Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 1 - Alguns elementos fundamentais de literatura em libras


1. Literatura em Libras no contexto brasileiro

Literatura em Libras? Como assim? Será que isso existe?

Existe, sim. Neste livro, vamos conhecer a literatura em Libras, a literatura em língua de sinais da comunidade surda brasileira. Vamos conhecer uma seleção de obras de literatura em Libras e pensar sobre algumas maneiras de analisá-las.

A literatura em Libras é feita principalmente para divertir. A maioria das pessoas que assistem às performances não têm interesse em fazer uma análise da obra, basta somente que sintam prazer em ver a literatura, para dar um like ou aplaudi-la. Mas, para estudar essa literatura, precisamos refletir sobre os textos literários e fazer uma análise que ajude a perceber por que uma obra literária é boa e entender como ela foi feita.

1.1. Sabemos o que é literatura?

Você já sabe o que é literatura. Com certeza, seja a Libras ou o português a sua primeira língua, você já estudou poesia ou narrativas na língua portuguesa da literatura brasileira na escola. Seus professores provavelmente mostraram para você alguns exemplos de contos, poemas, crônicas ou romances de autores brasileiros julgados como o melhor da literatura brasileira, que apresentaram a riqueza da língua, a complexidade e diversidade da vida e da cultura do Brasil. Talvez você tenha se perguntado: mas quem foi que fez esse julgamento?

Muitas pessoas pensam que a literatura é apenas um tipo de criação linguística culta e de alta cultura, frequentemente inacessível às pessoas comuns ou simples. Achamos que a literatura brasileira é feita de obras de autores clássicos (e mortos) como Casimiro de Abreu, José de Alencar, Vinícius de Morais, Castro Alves, Jorge Amado, Machado de Assis, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz. E essas obras fazem parte dela, sim, porém defendemos que a literatura não é apenas culta para estudo, mas também popular e informal para entretenimento. Os livros de Paulo Coelho, livros de contos de fadas ou outras narrativas de literatura infantil (como por exemplo o Sítio do Pica-Pau Amarelo), os poemas de Cordel contemporâneos (como os apresentados por Bráulio Bessa na televisão no programa da Fátima Bernardes), as letras das canções de samba, rap e funk, os quadrinhos da Turma da Mônica, até as discussões sobre novelas da TV nas redes sociais, são todos formas de literatura brasileira. Talvez você tenha achado estranho pensar nesses exemplos como “literatura”, mas cada gênero1 foi julgado por determinados grupos de brasileiros como uma forma válida de se usar a linguagem criativa para gerar emoções no público.

Tratamos a literatura como um artefato ou evento linguístico não cotidiano,2 que vai além de simplesmente comunicar. O importante na literatura é o uso da linguagem com o principal objetivo de proporcionar prazer, de maneira que a sua estrutura se destaque. Seguindo Sutton-Spence e Kaneko (2016, p. 24), dizemos que “a literatura é qualquer corpo de produções baseado na linguagem que é considerado socialmente, historicamente, religiosamente, culturalmente ou linguisticamente importante para a comunidade” (tradução nossa).

Muitas pessoas entendem literatura como uma arte estética da linguagem escrita que se centra no texto escrito, com foco nas atividades de ler e escrever. Essa definição, todavia, é muito limitada e exclui já muitos exemplos de uso da língua estética, mesmo em português, porque estão na forma falada. A literatura dos surdos criada em Libras é raramente escrita, mas é uma forma de literatura. Defendemos, nos próximos capítulos que, se a literatura em Libras não se encaixa numa definição de “literatura” preexistente, esta deveria mudar para que possa incluir as produções em língua de sinais.

A definição de literatura não é fixa. O poeta Romano Ovídio disse que o objetivo da literatura era “ensinar por encantar” (docere delectando em Latim). A partir do século XVI, surgiu a noção de que, entre todos os gêneros de texto, a literatura é que tem o prazer como o principal objetivo (embora o ensino possa ser também outro objetivo com seu uso). Hoje, as noções de literatura e prazer são intimamente ligadas, mas há uma certa ironia quando a maneira de estudar a literatura se desvincula do prazer.

Um conceito fundamental para a literatura é o de “estética”. Isso quer dizer, o foco na qualidade que percebemos, especialmente, a beleza. Notamos a linguagem estética quando reconhecemos alguma coisa como bela ou prazerosa na forma das palavras ou no jeito como é apresentada. Por isso, uma característica da literatura é a percepção da linguagem estética – bela, aprazível, agradável e divertida. Geralmente, a literatura se centra na língua estética que tem características fora do comum, trata com a perspectiva não cotidiana, apresenta-se de uma forma diferente da vida no seu dia a dia. Na Europa, nos séculos XVII e XVIII, a literatura valorizada usava a linguagem antiga, complexa e erudita. Um texto prazeroso escrito na língua do cotidiano não era considerado literatura. Hoje, a forma da língua chama a atenção para a literatura (e vice-versa), mas não é preciso saber um vocabulário e uma gramática especial para acompanhá-la.

Vemos que outras ideias sobre o que “a literatura deve ser” mudaram. A partir do século XIX, surgiu a noção de que a literatura deveria apresentar novas perspectivas sobre os assuntos tratados, questionando o que é que achamos que já sabemos. A originalidade e a perspectiva individual começaram a ser valorizadas. Por muitos anos, a metáfora e as maneiras indiretas de expressar uma ideia foram estimadas, mas no século XX surgiu o objetivo de expressar pensamentos do modo mais direto possível. Também, no mesmo século, surgiu a ideia de que a literatura deve desconstruir a estrutura da língua para mostrar a inconfiabilidade das palavras e dos sentidos. Desde o Modernismo, alguns poetas inovaram muito o modo de fazer poesia, associando elementos fortemente visuais, utilizando recursos das linguagens dos meios de comunicação de massa e buscando abolir a utilização do verso tradicional, por exemplo nos poemas concretos.

Esses são apenas alguns exemplos para mostrar como o conceito de literatura variou e mudou durante a história3, portanto não podemos dizer que a literatura “é assim” ou “deve ser assim”. Mas todas as ideias sobre a sua natureza durante a história têm elementos que podemos usar para entender a literatura em Libras hoje.

Principalmente, defendemos que a literatura nos permite brincar com a língua para gerar prazer, tanto em português quanto em língua brasileira de sinais.

1.2. O que é literatura em Libras?

O termo “literatura em Libras” pode se referir a poemas, contos, piadas, jogos e outras formas de arte criativas feitas em Libras que são culturalmente valorizadas. A literatura produzida em Libras é uma forma linguística de celebrar a vida surda e a língua de sinais. Embora tenha as suas origens na língua de sinais cotidiana, essa língua mudou e se destaca por ser “diferente”. Conforme afirma a pesquisadora norte-americana Heidi Rose (2006), a literatura em qualquer língua de sinais mescla a língua, as imagens visuais e a dança, sendo uma mistura de sinais e gestos, uma literatura do corpo e uma literatura de performance.

A literatura em Libras é um artefato4 importante da cultura surda e também é um processo (MOURÃO, 2011), visto que as pessoas surdas participam da literatura e assim ela está constantemente mudando. A forma dessa arte é uma troca social na qual os artistas e seu público a constroem juntos.

A literatura surda original em Libras, ou seja, a que não foi traduzida da literatura das línguas orais para língua de sinais, é especialmente valorizada na comunidade surda, porque ela mostra as experiências das vidas dos surdos. Algumas dessas experiências vivenciadas são iguais às das pessoas ouvintes, mas outras são particulares de pessoas surdas (como a resistência à opressão pela sociedade dos ouvintes, os problemas de educação dos surdos, as alegrias de conhecer a Libras, a experiência visual do mundo dos surdos e os sucessos da comunidade surda). Seja qual for o assunto, a literatura mostra a perspectiva visual de uma pessoa surda através da língua de sinais.

A literatura em Libras é uma oportunidade de brincar com a língua. Libras não é uma mera “linguagem” que permite que os surdos tenham acesso à sociedade dos ouvintes e à língua portuguesa. Ela é uma língua completa e deve ser usada para todas as funções de uma língua, inclusive a lúdica5. Assim como ocorre com a literatura brasileira escrita em português, a literatura em Libras se concentra na forma estética da Libras, que tem características fora do comum, trata do conteúdo com perspectiva não cotidiana e se apresenta de uma maneira que seria diferente da vida comum. Em resumo, a literatura em Libras é bonita, espirituosa, brincalhona e frequentemente muito agradável.

1.2.1. A Relação entre a Literatura em Libras e a Literatura Brasileira

Todos os brasileiros, sejam eles ouvintes ou surdos, podem ter visto alguns exemplos de literatura brasileira em língua portuguesa. Mas sabemos que a literatura brasileira não é feita apenas em português e deve incluir também a literatura do povo brasileiro surdo, que é feita em Libras.

O povo surdo brasileiro cria a literatura dentro de seu contexto nacional. Embora os surdos componham literatura em Libras, são todos bilíngues que sabem a língua portuguesa (ainda que esta seja uma segunda língua) e participam da vida cultural dos brasileiros. A experiência dos surdos brasileiros faz parte da vida brasileira: a comida, as roupas e as tradições culturais (como as festas e as crenças folclóricas); a natureza, a geografia e a história do país; a vida política, social, econômica e técnica, tudo isso faz parte da literatura em Libras. Por isso, ainda que se trate de uma literatura em língua de sinais feita por pessoas surdas, a literatura em Libras faz parte da literatura brasileira. Além da importância da cultura do país, também tem influência da literatura em língua portuguesa nos assuntos abordados, na estrutura e na sua forma de apresentação.

Por outro lado, a literatura em Libras é principalmente a literatura de uma comunidade surda, do “povo do olho” (em inglês "People of the Eye"6). Por isso tem características compartilhadas com outras comunidades surdas mundiais. Por exemplo, a experiência de se perceber o mundo principalmente através da visão - e não através dos sons - gera literaturas surdas com foco principal nas imagens visuais em qualquer país. A experiência compartilhada pelos surdos como um grupo minoritário no contexto da sociedade dos ouvintes cria muitos tópicos parecidos nas literaturas mundiais dos surdos.

Em todas as literaturas de línguas de sinais já pesquisadas vemos a importância da criação de imagens visuais por meio de sinais. A gramática das línguas de sinais, sendo baseada no raciocínio visual, gera línguas de sinais com elementos linguísticos muito parecidos e assim podemos ver que a língua estética nas literaturas em outras línguas de sinais como ASL,7 DGS8 ou BSL9 tem muito em comum com a literatura em Libras, mesmo que as culturas nacionais sejam diferentes.

Devido a essa similaridade, os artistas surdos também podem influenciar a literatura em outros países. Veremos, por exemplo, que alguns poetas de ASL nos Estados Unidos influenciaram outros artistas surdos no Brasil e que os artistas brasileiros já compartilharam ideias que influenciaram poetas como os chilenos e irlandeses. Graças à tecnologia de vídeo e da internet, os artistas hoje têm muitos recursos para estudar a literatura surda internacional.

Assim, entendemos que a literatura em Libras faz parte da literatura surda mundial e da literatura brasileira.

1.3. Literatura e Letras Libras

Apesar de os surdos no mundo inteiro terem muitas características semelhantes, a comunidade surda brasileira é diferente das comunidades de outros países pela existência da Lei de Libras. As experiências políticas e educacionais – e até literárias – acontecem todas em respeito à Lei 10436/2002 e ao Decreto 5626/2005, que estabelece o direito dos surdos de ter acesso a informações em Libras. Com isso, estamos vivendo um momento importantíssimo do país, com professores surdos em muitas universidades – federais, estaduais e privadas– nos cursos de Letras Libras e/ou ensinando Libras, pesquisando sobre a língua e a comunidade surda e divulgando os conhecimentos através de publicações e ações de extensão. Hoje, em universidades de todo o Brasil, temos disciplinas que estudam a literatura surda.

A palavra "literatura" é derivada da mesma palavra latina que nos traz o vocábulo "letra" e tem sido associada com “escrita”. Antigamente, relacionava-se à ideia da educação obtida por meio de leitura, referindo-se às habilidades técnicas de leitura e de escrita. Nos estudos de Letras, como Letras Português, Letras Inglês ou Letras Espanhol, esperamos estudar as línguas e suas respectivas literaturas. Nos cursos de Letras Libras também é importante estudarmos a língua, Libras, e a sua literatura. Temos cada vez mais publicações sobre a língua brasileira de sinais que impulsionam os seus estudos. E os currículos dos cursos incluem diversas disciplinas sobre a estrutura, o uso e o ensino da língua. Desde o início dos cursos de Letras Libras, em 2006, sempre foi incluída pelo menos uma disciplina sobre literatura surda ao currículo (cabe aqui nossa homenagem à professora Lodenir Karnopp da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – pelo trabalho pioneiro nessa área).

Infelizmente, raramente pessoas surdas (e ouvintes também) estudam a literatura em Libras na escola. Por isso, há poucos artistas literários de Libras formados na área e seu público não tem muita experiência ou conhecimento sobre o assunto. No entanto, os artistas da comunidade surda e o seu público criam e se divertem com a literatura surda. Estudar esse conteúdo nas disciplinas de cursos de Letras pode servir para ajudar a aumentar o número de artistas e para que estes aprimorem suas criações, além de criar e incentivar um público surdo com conhecimentos para entender e estimar a literatura surda. Podemos divulgar informações sobre essa forma de arte para os futuros professores de Libras, para professores de alunos surdos e para intérpretes de Libras/português, a fim de que a literatura cresça cada vez mais. Através do estudo da literatura em Libras se pode entender progressivamente a cultura e a identidade surdas, a essência do ser surdo e, assim, melhor a Libras. E, esperamos, ter um enorme prazer em conhecer essa literatura.

objetivo

1.4. Resumo

Nessa introdução à literatura em Libras vimos que a literatura feita em língua de sinais pela comunidade surda brasileira tem muitas características semelhantes à literatura escrita em português e a literaturas em outras línguas de sinais. Todas as literaturas se centram na linguagem estética, têm características fora do comum, tratam de conteúdo de perspectiva não cotidiana e se apresentam de uma forma diferente da vida no seu dia a dia. A literatura em Libras (ou em outras línguas de sinais) e a literatura em português nos permitem brincar com as línguas e nos mostram a riqueza dos idiomas.

objetivo

1.5. Atividade

  1. Vamos refletir um pouco sobre a sua experiência com a literatura brasileira.

    • Você pode pensar em exemplos de literatura em português que você conhece ou gosta (poemas, narrativas, contos, piadas, peças de teatro, tanto de literatura “culta” quanto “popular”)?
    • Por que você gosta dessas obras?
    • Você já leu ou viu literatura em outros idiomas? Tentou assistir a um filme em inglês ou espanhol (com ou sem legendas em português)? Leu algum livro escrito em outro idioma traduzido para o português (por exemplo: Harry Potter ou O Código da Vinci)?
    • Você já participou de um evento de literatura em português?
    • Você gosta de criar textos literários em português? Você já escreveu poemas (embora nunca tenha mostrado eles para ninguém)? Escreveu algum tipo de narrativa curta ou contou histórias da sua juventude para os seus sobrinhos?
Agora:

Você consegue pensar em exemplos de literatura (poemas, narrativas, contos, piadas ou peças de teatro) em Libras que você conhece ou gosta (de literatura “culta” ou “popular”)?

  • Por que você gosta dessas obras?
  • Você já viu literatura em outras línguas de sinais?
  • Você já participou de algum evento de literatura em Libras como, por exemplo, um festival?
  • Você gosta de criar textos literários em Libras? Você já criou um poema, traduziu uma música ou uma piada de português para Libras ou contou histórias em Libras?
  • Talvez você tenha respondido às questões na atividade acima sobre o conhecimento de literatura em Libras afirmativamente porque já conhece a literatura surda. Mas, se você ainda não tem experiência com a literatura surda, vamos conhecer muitos exemplos dela nos próximos capítulos. Começaremos aqui, na próxima atividade.
  1. Dedique algum tempo para assistir aos vídeos a seguir. Vale a pena investir seu tempo. Você vai levar 17 minutos para assistir a todos. No entanto, pedimos que você assista a cada vídeo no mínimo duas vezes, porque eles mostram diversos exemplos de literatura em Libras. Na primeira vez, você pode assistir ao vídeo apenas para conhecer (e se divertir) e depois pode ver de novo para apreciar mais profundamente.

lista de videos

  • Poesia estética – Como veio alimentação, de Fernanda Machado (duração 00:37).
  • Poesia narrativa – As Brasileiras, de Klícia de Araújo Campos e Anna Luiza Maciel (duração 02:42).
  • Narrativa original - Leoa Guerreira, de Vanessa Vidal (duração 03:33).
  • Poesia Cinemática ou Vernacular Visual - Unexpected moment (“Momento inesperado”), de Amina Ouahid e Jamila Ouahid (duração 01:31). (Obs: Essa poesia foi feita por pessoas suecas, mas devido a sua forma visual não é preciso dominar língua sueca de sinais para entendê-la).
  • Narrativa de lenda tradicional – O Negrinho do Pastoreio, de Roger Prestes (duração 03:11).
  • Poesia traduzida – As Borboletas, de Vinicius de Moraes, traduzido por Wilson Santos (duração 01:15).
  • O Hino Nacional Brasileiro, adaptado por Bruno Ramos (duração 04:15).
  1. Nesses exemplos de literatura sinalizada, vimos a Libras estética não cotidiana.
  • O que você achou da forma da língua utilizada? É normal e igual à língua cotidiana?
  • O que você achou dos tópicos apresentados? Falam de assuntos que encontramos no dia a dia?
  • O que você achou do estilo da apresentação? Uma pessoa normalmente
Uma classificação de um conjunto de textos com características semelhantes. Falaremos mais sobre gêneros de literatura nos capítulos 07, 08 e 14. Que não acontece todos os dias, ou seja, extraordinário. Esse resumo baseia-se nas ideias de Peter Barry, 2017. Um objeto feito pelo ser humano. Divertida ou como uma brincadeira. Atribuído ao surdo George Veditz, 1912. Veja, por exemplo, Lane, Pillard e Hedberg (2010). American Sign Language - Língua de Sinais Americana. Deutsche Gebärdensprache – Língua de Sinais Alemã. British Sign Language - Língua de Sinais Britânica.