Parte 3 - Elementos de linguagem estética
15. A estrutura espacial na Literatura em Libras
15.1. Objetivo
Neste capítulo, investigaremos o uso do espaço nas histórias e nos poemas em Libras, focando especialmente nos poemas. Artistas podem usar o espaço para criar imagens fortemente visuais ou para gerar sentidos específicos através de metáforas. Normalmente, nos poemas, esperamos o uso do espaço de maneira mais metafórica, mas ambos os gêneros de prosa ou poesia usam-no para criarem imagens visuais agradáveis ao público.
Para descrever os usos do espaço, vamos usar os seguintes poemas:
- As Brasileiras, de Anna Luiza Maciel e Klícia Campos.
- A Economia, de Sara Theisen Amorim e Ângela Eiko Okumura.
- O Farol da Barra, de Maurício Barreto.
- Lei de Libras, de Anna Luiza Maciel e Sara Theisen Amorim.
- Meu ser é nordestino, de Klícia Campos.
- Voo sobre Rio, de Fernanda Machado.
15.2. Introdução ao uso do espaço em línguas de sinais
A Libras é uma língua viso-espacial. Isso significa que os sinais são produzidos, localizados e movidos no espaço físico ao redor do sinalizante. Os sinais ocupam o “espaço neutro” em frente ao sinalizante ou são articulados no corpo. Os estudos linguísticos de línguas de sinais apontam que existem representações diversas de espaço, apesar de as mãos ocuparem o mesmo espaço físico.
Nos sinais convencionais e estabelecidos pelo vocabulário da Libras (ver capítulo 04), os parâmetros fonético-fonológicos dos sinais necessitam que cada sinal seja articulado em pelo menos um lugar. Além disso, o parâmetro de movimento pode criar o deslocamento da mão de um lugar para outro. Por exemplo, no poema O Farol da Barra, de Maurício Barreto, vemos os sinais pedra e Bahia. A locação da mão ativa no sinal pedra ocorre nas costas da mão passiva; no sinal Bahia, a mão começa no peito e o movimento desloca o sinal até o espaço neutro. Muitas vezes, o lugar de articulação é motivado pela iconicidade.
Alguns sinais lexicais são fixados no corpo e outros são colocados no espaço neutro. Sinais fixados no corpo são feitos em contato com locais nele, por exemplo comer (na boca) entender (na têmpora), aluno (no braço) e saúde (no peito). A locação da maioria dos sinais ancorados no corpo acontece de alguma forma iconicamente motivada. O sinal comer está localizado na boca porque comemos colocando comida em nossas bocas, então localizar o sinal em qualquer outro lugar seria ilógico. A locação do sinal entender, na têmpora, é motivada pelo fato de que processos mentais ocorrem no cérebro, que está localizado fisicamente na cabeça. A escala crescente de alunos durante a vida escolar de 0 a 12 é mapeada nos braços e ombros do sinalizante, com a locação no corpo ficando cada vez mais alta para cada série e, por associação, um sinal comum em Libras aluno está localizado na mesma área geral do braço. Metonimicamente (no capítulo 16 falamos mais sobre metonímia), o sinal saúde baseia-se na associação com o movimento do estetoscópio de um médico de um lado do peito ao outro para avaliar a saúde de um paciente. A locação no corpo é especificada dentro da estrutura de todos esses sinais por causa do sentido, e qualquer alteração na locação do sinal mudará o seu significado.
Os sinais articulados no espaço neutro são um pouco diferentes dos sinais fixados no corpo. O espaço neutro é o espaço em frente ao corpo do sinalizante, geralmente se estendendo horizontalmente da esquerda para a direita, com os braços em um ângulo de 45° em relação ao corpo; verticalmente da altura da cintura até a altura da cabeça e avançando até onde os cotovelos podem se estender confortavelmente, pelos 70°. Exemplos de sinais que são feitos em espaço neutro incluem trabalhar, brincar, professor e agricultor. A locação deles geralmente não é iconicamente motivada, são colocados na frente do sinalizante - simplesmente num lugar confortável para articulação com menor esforço. Mas eles são colocados em diferentes partes do espaço neutro, quando o contexto do discurso exige. Por exemplo, se quisermos comparar o trabalho de professores e agricultores, podemos colocar o sinal professor à esquerda do espaço e agricultor à direita, localizando as ideias dos dois trabalhos nos espaços contrastantes para que cada lugar se torne o espaço de referência para essas ideias. Entendemos que o professor e o agricultor não estão realmente nesses dois espaços, mas sim as ideias de um professor e de um agricultor. Quando colocamos os sinais no espaço neutro, seu significado fundamental não muda. Essa distinção entre os sinais ancorados no corpo e aqueles feitos no espaço neutro é importante quando pensamos sobre o uso do espaço na literatura em Libras.
A visão tradicional do uso do espaço nas línguas de sinais (especialmente do espaço neutro) é a de que ele pode ser arbitrário ou motivado. No espaço arbitrário, a colocação e o movimento dos sinais são aleatórios (por exemplo, colocar os professores à esquerda ou à direita dos agricultores é geralmente uma escolha do sinalizante) ou controlados por regras gramaticais como 1ª, 2ª e 3ª pessoa. Liddell (1990; 2003) refere-se a esse uso abstrato do espaço como o “espaço simbólico”. O espaço motivado tem sido descrito como “topográfico”, como um mapa (PADDEN, 1990), ou “substituto”39 , porque o espaço dos sinais substitui o espaço real (LIDDELL, 2003). Aqui, a locação dos sinais no espaço neutro tem um significado específico. O layout espacial criado nesse tipo de espaço reflete o layout real de um evento. No topográfico, podemos colocar e mover classificadores para mostrar o posicionamento e o movimento de objetos no mundo real. Podemos, também, incorporar uma pessoa que está localizada dentro do espaço topográfico apresentado. Na incorporação, a locação e o movimento das mãos do sinalizante representam a locação e o movimento das mãos do personagem.
15.3. O espaço literal e topográfico (não metafórico) na literatura
O espaço físico literal, também chamado de espaço topográfico, mostra o mundo de fora do sinalizante dentro do espaço dos sinais.
No poema Meu ser é nordestino, a artista Klícia Campos cria uma imagem do sertão nordestino, colocando e movendo as mãos em classificadores no espaço literal e topográfico. No primeiro sinal do poema, ela nos diz que se trata de uma memória. Os sinais falados dessa memória são feitos perto da testa, pois a memória é um processo mental localizado no cérebro. Seria ilógico colocar os sinais em qualquer outro lugar. Depois, entramos na sua memória e ela mostra uma ave que voa do céu para a terra, de cima para baixo. As mãos mostram esse movimento dentro do espaço literal e topográfico por meio do uso de um classificador que mostra as asas da ave batendo e descendo de cima para baixo. Os rios descem das montanhas para o vale. As mãos novamente fazem classificadores representando a largura dos rios, que se movem de cima para baixo, até que chegam no vale largo, aberto e plano, onde se movem sinuosamente no plano horizontal, do corpo para frente, criando a imagem do rio sinuoso fluindo. Os classificadores que mostram a terra da beira do rio traçam o espaço nos dois lados dele. Essa imagem traz um cenário “a distância” parecido com as aberturas de um filme, que mostra uma paisagem (lembra-nos dos filmes de Glauber Rocha, por exemplo)40.
Depois, vemos uma pessoa dentro dessa paisagem, na seca, com imagens mais próximas, mas sempre mantendo o espaço topográfico. A nordestina (incorporada no corpo da poeta) monta a cavalo e a sua mão esquerda, localizada no lado esquerdo, perto do rosto, mostra uma árvore torta passando perto da face da cavaleira (a mão realmente passa perto do rosto da poeta). A mão direita, na mesma configuração, chega a tocar o rosto (da cavaleira), mostrando que a árvore o arranha (e a expressão facial na incorporação mostra que ela não se importa). Novamente, vemos a representação fortemente visual da imagem de um lugar no mundo, criada no espaço de sinalização de uma forma topográfica e literal.
Poemas e histórias em Libras usam o espaço para criar imagens de máxima força visual. Eles podem descrever uma cena ou uma vista estática, construindo a imagem como se fosse um filme. Para criar uma cena, o narrador normalmente apresenta primeiro os objetos maiores, imóveis e inanimados e depois os objetos menores, móveis ou animados. Isso quer dizer que, normalmente, o narrador mostra a cena antes de mostrar o personagem. Vemos isso no poema Meu ser é nordestino. E a mesma coisa acontece no poema Voo sobre Rio, de Fernanda Machado, em que a artista apresenta primeiro o planeta e depois a ave.
A apresentação suave de sinais numa escala graduada descreve as coisas para mostrar o crescimento do mais distante ao mais próximo (ou ao contrário). O artista pode aumentar o tamanho do sinal abrindo os dedos, substituindo um classificador por outro ou utilizando a incorporação. Pode, também, alterar a posição das mãos no espaço neutro em relação ao corpo. Em Voo sobre Rio, o primeiro sinal falando do planeta mostra uma perspectiva muito longe por meio apenas da ponta do dedo, e cada sinal cresce, aumentando o tamanho do planeta: da mão com os dedos fechados em forma de “O”, depois as duas mãos com os dedos curvados juntos para criar uma forma esférica, até as duas mãos separadas de dedos quase retos, que criam uma esfera ainda maior. O primeiro sinal da estátua do Cristo Redentor é visto de longe - a poeta usa um classificador para uma cruz com apenas os dedos indicadores cruzados. As mãos se aproximam do corpo para mostrar o tamanho crescente da estátua, até que a poeta a incorpora em seu próprio corpo e mostra o Cristo Redentor de uma perspectiva grande e de perto. A representação do Pão de Açúcar também começa a distância, com classificadores de dois punhos (as mãos fechadas) para duas coisas esféricas pequenas, cada vez crescendo mais com os dedos se abrindo e as mãos se aproximando do corpo da poeta para mostrar a ave se aproximando e passando perto das duas rochas grandes.
Normalmente, o espectador entende que o sinal mais próximo ao corpo do artista significa que o tamanho aumentou, porque vemos a cena da perspectiva do sinalizante, mas, o artista pode também levar os sinais ao espectador. Em algumas gravações em vídeo, os sinais podem se aproximar da câmera, chegando quase até a lente. Embora não seja um poema, vimos isso na história Galinha Fantasma, de Bruno Ramos, na descrição das cabeças fantasmas das galinhas, que usa classificadores na forma do bico da ave para mostrar as cabeças circulando no quarto. Mas, para aumentar o terror, os classificadores ficam cada vez mais perto da câmera – e assim mais perto do público. No último sinal da história, a mão e o rosto do narrador preenchem a tela inteira.
Numa obra literária em Libras, cada objeto pode ser localizado para criar movimentos suaves no espaço. Isso cria o morfismo, em que o local final de um sinal é o ponto inicial do próximo sinal. Assim, minimiza-se o movimento de transição entre os sinais e cria-se uma experiência suave e estética para o espectador. Maurício Barreto usa muito o morfismo no poema O Farol da Barra. O primeiro sinal, deus, termina num ponto alto na esquerda da tela. O seguinte, graça-divina, começa nesse ponto do sinal anterior e vai até o rosto do poeta. A mão cai lentamente até o nível do peito e se torna o sinal ondas-do-mar. A mão direita, sinalizando a onda, muda para o classificador, mostrando uma pedra no mesmo lugar. A mão vira e se levanta para se tornar a lua. Não há movimento desnecessário na criação da cena, e isso gera um efeito estético muito forte, mesmo que também represente uma imagem no espaço topográfico.
15.4. O espaço simbólico (metafórico)
Nos poemas, o uso do espaço não é apenas estético, mas pode gerar outros sentidos metafóricos. Veremos no capítulo 16 que a teoria da metáfora cognitiva (partindo principalmente do trabalho de Lakoff e Johnson, 1980) fala da metáfora orientacional, na qual entendemos que o espaço real e concreto tem sentido metafórico nos conceitos abstratos. Por exemplo, o que está mais alto significa metaforicamente uma coisa mais positiva ou poderosa e o que está mais baixo significa algo mais negativo ou sem poder. De frente para trás, o espaço mais perto e mais longe do corpo pode significar, numa escala metafórica, futuro ou passado, valorizado ou não, ou algo que está visível (e assim mais perto do espectador) ou escondido (portanto, mais próximo ao corpo). Vamos pensar mais sobre isso agora observando os poemas.
15.4.1. Alto-baixo
Os poemas As Brasileiras, de Anna Luiza Maciel e Klícia Campos, e Meu ser é nordestino, de Klícia Campos, usam a mesma ideia do que está no alto caracteriza o que é mais poderoso. No primeiro poema, os sinais da Paulistana rica – numa cidade chuvosa onde a vida é mais fácil com água - são articulados acima dos sinais da Nordestina pobre - onde a seca torna a vida mais difícil. No segundo, o sofrimento e a opressão são apresentados com sinais mais baixos e com o corpo inteiro abaixado. Quando a personagem no poema resiste à opressão e reconhece o orgulho de ser nordestina, seu corpo fica mais ereto e os sinais voltam a ser mais altos.
15.4.2. Lado a lado
Os sinais apresentados em lados opostos podem mostrar a ideia de oposição ou concordância de conceitos. Num dueto, podemos criar essas metáforas com as duas pessoas lado a lado no espaço real. No poema As Brasileiras, as duas artistas ficam dispostas espacialmente desse modo. No início, elas ficam perto uma da outra, com os corpos em contato, sinalizam com as mãos juntas e até utilizam, cada uma, a mão para criar os sinais no corpo da outra. Essa proximidade extrema (lembramos que não é normal sinalizar dessa maneira em Libras) mostra que as duas são brasileiras, portanto iguais. Depois, elas se afastam para mostrar o contraste entre suas vidas diferentes. Mas o último sinal, em que a paulistana joga a água para o alto em São Paulo e a nordestina pega seu copo quase nos joelhos, no Nordeste, cria um sentido muito forte de contraste por elas estarem lado a lado. No final do poema, no entanto, as duas se aproximam novamente, com suas mochilas em contato. Apesar das diferenças, elas são brasileiras.
No poema dueto Lei de Libras, de Anna Luiza Maciel e Sara Theisen Amorim, vemos a ideia de concordância e apoio no espaço lado a lado. Elas sinalizam os mesmos sinais simultaneamente, no mesmo espaço, e até usam a mão passiva de uma e a mão ativa de outra para criarem juntas os sinais lei e libras. Isso mostra, metaforicamente no espaço, o conceito central do poema que é a unidade da comunidade surda perante a Lei de Libras. Elas dizem, no final, que a Lei de Libras “é sempre nós”, mas a ideia de ser “nós” é também criada através do uso do espaço.
15.4.3. Em frente e atrás
A ideia de que o que está em frente é conhecido e atrás desconhecido é a metáfora usada no poema dueto A Economia, de Sara Theisen Amorim e Ângela Eiko Okumura. Nele, uma poeta, Ângela, fica por trás da outra poeta, Sara. Esta incorpora a trabalhadora humana que tem emoções. Ângela incorpora o dinheiro e a economia, que não são humanos, e não têm emoções. São as partes escondidas e mal-entendidas da nossa vida, que funcionam sem termos pleno conhecimento e controle sobre elas. Sara, na frente, sinaliza trabalhar para mostrar a pessoa trabalhando. Vemos as emoções dela no rosto. No final do mês, a mão de uma pessoa desconhecida vem por trás e coloca o salário no bolso dela. Isso mostra as forças impessoais da economia. Sara, na frente, sinaliza as necessidades de pagar o aluguel, a internet e o mercado e as mãos de Ângela, que representam a economia que tira o dinheiro dela, sinaliza gastar. Sara sinaliza trabalhar novamente e a mão de Ângela, escondida, ao invés de colocar o salário mensal no bolso, tira-o e o leva dali. Finalmente, a economia se revela, e a trabalhadora pode ver a economia real quando é demitida (sinalizado pela personagem por trás). Quando a trabalhadora reclama, vemos enfim a economia não humana que está atrás do nosso trabalho encolher os ombros com expressão de desdém. Por fim, demasiadamente tarde, a realidade da economia é revelada à trabalhadora. Essa metáfora pode ser representada de diversas maneiras, mas apresentá-la em forma de dueto, onde a pessoa por trás se esconde e se revela, cria um resultado fortemente visual em Libras.
15.5. Simetria
As divisões de espaço entre alto e baixo, esquerdo e direito ou em frente e atrás são exemplos de divisões espaciais com simetria. Vemos muita simetria nas poesias em Libras. Segundo o matemático Hermann Weyl,
por um lado, simétrico significa algo do tipo proporcional, bem equilibrado [...] A beleza está ligada à simetria [...] A imagem do equilíbrio proporciona uma ligação natural com o segundo sentido em que a palavra simetria é usada nos tempos modernos: a simetria bilateral, a simetria entre a esquerda e a direita, a qual está tão em evidência... no corpo humano. (WEYL, 1952, p. 1, tradução nossa.)
Dentro da ideia de simetria, pensamos na dualidade, na oposição e no equilíbrio. A dualidade está relacionada à oposição, por exemplo, entre o bem e o mal, o rico e o pobre, o velho e o jovem; em que conceitos que parecem opostos estão equilibrados, há simetria e harmonia. Às vezes, a simetria na poesia em Libras é meramente estética, gerando imagens equilibradas e agradáveis, mas outras vezes, é metafórica (KLAMT, MACHADO e QUADROS, 2014).
15.5.1. Simetria geométrica
Existem diversos tipos de simetria no espaço, muitas delas sendo criadas no espaço dos sinais em Libras. Na descrição dos tipos de simetria, vamos focar principalmente no poema Voo sobre Rio, de Fernanda Machado.
15.5.1.1. Reflexo
O tipo de simetria mais conhecido, e o que normalmente encontramos, é o “reflexo”, que é a simetria como num espelho. Muitos poemas usam as duas mãos com a mesma configuração de mão, localizadas no mesmo espaço (através do plano de simetria – por exemplo, a mão esquerda no ombro esquerdo e a mão direita no direito como no sinal passear) e com o mesmo movimento. Às vezes, as mãos articulam a simetria simultaneamente (isso é, no mesmo momento) e, outras vezes, sinalizam em sequência, primeiramente de um lado e depois do outro lado, criando uma simetria de reflexo temporal. Todos os poemas que descrevemos nesse capítulo têm muitos exemplos disso. Vale a pena assistir a todos eles e contar quantos sinais não são dessa forma.
O reflexo pode ter diferentes planos e eixos de simetria, e vemos todos esses no poema Voo sobre Rio, de Fernanda Machado.
Direita e esquerda (simetria vertical)
O poema tem muitos exemplos desse tipo de simetria. É o mais comum na poesia em Libras porque o nosso corpo é simétrico nos lados direito e esquerdo, com o plano de simetria central vertical. O olho, a orelha, o braço, a mão e a perna no lado esquerdo são (quase) iguais a essas mesmas partes do corpo no lado direito. Por isso, os locais e os movimentos dos sinais podem facilmente ser simétricos nesse plano.
Quando Fernanda incorpora a ave, ela move os braços para mostrar o bater das asas, com um sinal simétrico em que os braços têm a mesma configuração e se movem da mesma maneira nos dois lados do plano de simetria vertical, que está localizada no corpo da artista (e que, nesse contexto, é o corpo da ave). No classificador representando a ave, as duas mãos têm a mesma forma e o mesmo movimento, divididas no plano de simetria vertical que está localizado nos polegares em contato. O classificador mostrando o Cristo Redentor com a forma de uma cruz é feito pelas duas mãos com a mesma configuração, criando uma imagem simétrica com o plano vertical localizado no dedo indicador. O sinal mais conhecido do poema, em que as duas aves se beijam, é simétrico nesse plano vertical. É um sinal destacadamente especial porque dois sinais de um classificador representando as aves se juntam para criar um sinal simétrico, o do coração.
Acima e abaixo (simetria horizontal)
Esse tipo de simetria com o plano horizontal é menos comum porque nosso corpo não tem esse plano de simetria fisicamente. A parte de cima do corpo é muito diferente da parte de baixo. Porém, podemos criar uma simetria com esse plano porque, com um pouco de esforço, podemos pôr uma mão e até um braço acima do outro.
Em Voo sobre Rio, o sinal planeta é feito com uma mão por cima da outra.
Em frente e atrás
Essa simetria é a menos comum, porque é difícil criá-la (pois exige mais esforço na produção do sinal) e percebê-la (pois exige mais esforço por parte do espectador). Apesar disso, vemos exemplos lindos no poema Voo sobre Rio quando as aves se abraçam e uma fica olhando para trás e a outra para frente.
Além desses exemplos, vemos que qualquer plano de simetria pode ser também diagonal.
15.5.1.2. Outros tipos de simetria geométrica
Na rotação (girar) vemos os sinais que têm os mesmos parâmetros e estão no mesmo plano, mas que se movem em volta de um eixo central. Quando o planeta gira, as mãos giram, num exemplo de simetria de rotação. No primeiro encontro entre as aves, elas se olham e depois olham para o lado. A única diferença entre a ave olhando para o lado esquerdo ou direito, para frente ou para trás, é a rotação do sinal no espaço. Nas translações, as mãos deslizam, mas sabemos que, se estivessem juntas novamente, iam voltar a ficar simétricas. Os sinais das pessoas passeando na praia têm essa simetria, o movimento do planeta orbitando mostra translação; a cruz do Cristo Redentor deslizando para ficar mais perto do corpo também é uma translação. Nas dilatações, alteramos o tamanho de um sinal em relação a outro, mas todas as outras dimensões ficam iguais. Quando o Pão de Açúcar se aproxima, o tamanho das duas mãos (e assim, das rochas) aumenta com a mesma forma, mas uma mão é menor do que a outra. No mesmo sinal também vemos uma translação porque as duas mãos mantêm a relação entre elas, mas se deslocam para outro espaço.
15.5.1.3. E se não for simétrico?
Nem todos os poemas mostram simetria nem todos os sinais dentro de um poema simétrico são simétricos. A não simetria acontece quando não há uma tentativa de simetria, porém usamos o termo assimétrico para falar de uma rejeição intencional desta. A assimetria é tão significativa quanto a simetria na poesia. Quando a ave finalmente chega na terra, uma mão cai e ficamos apenas com a outra mão, mostrando uma ave. É um momento de constrangimento para o espectador. Até aqui tivemos movimento e simetria. De repente, tudo para e temos apenas uma mão articulando. A ave está sozinha. Com isso, perguntamos: o que acontecerá? Estamos preparados para o próximo evento, a chegada da segunda ave, e estamos aliviados em ver a volta da simetria. Daqui para frente, tudo é simétrico, até os últimos sinais assimétricos, quando o planeta diminui até virar um pontinho e nos despedimos das aves.
15.5.2. Simetria temática
A simetria temática fala do conteúdo do poema, e não necessariamente da sua forma. Essa simetria cria um equilíbrio no texto. O pesquisador de folclore Axel Olrik (1965) propôs a “Lei do contraste”, em que duas qualidades são apresentadas para criar desequilíbrio e equilíbrio dentro da narrativa ou do poema. Olrik observou que os contos folclóricos incluem contrastes como jovens e velhos, grandes e pequenos, homem e monstro, o bem e o mal para gerar equilíbrio no texto. Em Libras, podemos ver simetria temática entre surdos e ouvintes, Libras e português, sinalizar ou falar, fazer parte da comunidade surda ou se isolar, por exemplo. Nos poemas que estudamos nesse capítulo, vemos o contraste entre rico/pobre e seca/chuva (As Brasileiras), sofrimento/opressão e resistência/orgulho (Meu ser é nordestino), vontades humanas/poder de Deus (O Farol da Barra) e vida emocional do povo/indiferença da economia (A Economia).
15.5.3. Simetria temporal
Na simetria temporal, falamos de estruturas que são apresentadas durante um período que podemos imaginar de uma forma espacial. Assim, elementos como sinais, eventos ou ações podem acontecer no início e no final do espaço de tempo. O poema Voo sobre Rio mostra a simetria temporal de reflexão, em que os sinais e eventos do início são repetidos no final. Vemos as quatro perspectivas do planeta crescendo da ordem 1, 2, 3 e 4 no início, e no final, reduzindo, como 4, 3, 2 e 1 (decrescendo). Na primeira parte do poema, vemos a estátua do Cristo Redentor e o Pão de Açúcar crescendo e na segunda parte eles diminuem. No início, o bonde sobe, e, no final, ele desce. Na primeira parte do poema, a ave voa para baixo e na segunda parte, as asas batem para cima. Com essa simetria temporal, o espectador fica satisfeito com a estrutura do poema e com o prazer das imagens visuais criadas.
15.6. Resumo
Nesse capítulo, vimos que o espaço dos sinais cria muitas oportunidades para os poetas produzirem imagens estéticas agradáveis e metafóricas. O uso de espaço gera contraste e equilíbrio e o estudo da estrutura espacial pode mostrar, novamente, a riqueza dos poemas em Libras.
15.7. Atividade
Analise um poema onde vemos a simetria. Você pode observar alguns exemplos de:
-
Reflexão (como num espelho)
- Vertical: esquerda-direita (você deve encontrar muitos)
- em frente e atrás
- horizontal: acima-abaixo
- Rotação (girar)
- Translações (deslizar)
- Dilatações (alterar o tamanho)
- Você consegue encontrar exemplos de conceitos simétricos de temática?
- Você consegue encontrar exemplos de conceitos simétricos temporais?
- Observe como a simetria é criada e depois quebrada. Qual o efeito que a assimetria acrescenta?