Parte 1 - Alguns elementos fundamentais de literatura em libras
3. Como vemos esse espaço literário?
3.1. Objetivo
Já falamos de literatura em geral e neste capítulo pensaremos sobre as características e os tipos específicos (ou categorias) de literatura da comunidade surda que vamos estudar. Há vários termos, em português e em Libras, além de alguns conceitos parecidos que precisamos investigar, principalmente “literatura surda”, mas também “literatura em língua de sinais”, “literatura em Libras”, “literatura sinalizada” e “literatura visual”. Lembramos que não é fácil definir as categorias concretamente porque não existe uma simples definição satisfatória, mas podemos delinear as áreas de interesse para nossa discussão.
Podemos dizer, de forma breve, que a literatura surda é da comunidade surda e das pessoas surdas, já a literatura em língua de sinais é produzida na língua das pessoas surdas, lembrando que a literatura surda nem sempre está produzida em língua de sinais. Já a literatura em Libras é feita na língua de sinais dos surdos brasileiros.
A partir da perspectiva dos autores ou produtores da literatura, dos assuntos tratados nas produções e do público esperado, podemos pensar nos autores surdos e nos públicos surdos que são fundamentais para literatura surda. Não existe literatura em Libras sem a comunidade surda.
Neste capítulo, para esclarecer esses conceitos, falaremos de alguns vídeos, que você pode assistir agora:
- O Curupira, de Fábio de Sá.
- O Negrinho do Pastoreio, de Roger Prestes.
- Golf Ball, de Stefan Goldschmidt.
- A Pedra Rolante, de Sandro Pereira.
3.2. Literatura surda
Digamos que existe literatura surda, caracterizada por pelo menos um de quatro critérios. Todavia, é importante destacar que qualquer produção de literatura surda não tem a obrigação de satisfazer todos esses quatro critérios simultaneamente.
Literatura surda é uma literatura feita por surdos, geralmente membros da comunidade surda, semelhante ao conceito de “literatura negra”, que é escrita principalmente pelos autores negros. Pode ser criada e apresentada por surdos ou elaborada originalmente por não surdos, mas adaptada e apresentada por pessoas surdas.
Tem objetivo principal de atingir um público surdo. Os ouvintes também podem apreciar essa literatura, por exemplo os pais de crianças surdas ou professores que trabalham com alunos surdos, semelhante à literatura infantojuvenil, que espera ter como leitores crianças e jovens, sabendo, porém, que os adultos podem ser os seus leitores também. A maior parte da literatura surda em que o destinatário imaginado é o público surdo é criada por surdos, mas não é preciso ser assim. Autores ouvintes, ou autores surdos e ouvintes em parceria, também criam literatura surda destinada aos surdos e que trata da experiência ou do conhecimento dos surdos.
Nesse sentido, é sobre assuntos que tratam da experiência de ser surdo e muitas vezes do conhecimento da cultura surda, semelhante à literatura feminina que trata da experiência de mulheres, que se faz a literatura surda. Existem muitos exemplos de literatura surda com a temática do “sujeito surdo”. Um autor surdo pode escrever sobre a experiência surda para atingir um público ouvinte. Por outro lado, alguns livros infantis têm autores ouvintes, mas desde que fale de uma pessoa surda e esteja destinado ao público surdo, digamos que é um tipo de literatura surda.
Existe literatura surda na língua da sociedade ouvinte ou na língua de sinais; no Brasil, isso significa dizer que pode ser em português ou em Libras. Nessa categorização de “literatura surda”, focamos nas pessoas e não no conteúdo, então a língua em que é produzida não se destaca. Há vários livros escritos por surdos em português, muitos deles falando da experiência das pessoas surdas. Livros autobiográficos descrevem a experiência de ser surdo para explicar para os leitores (surdos ou não) quais os desafios, os sofrimentos, os esforços, os prazeres e as felicidades de ser surdo. A pesquisa de Müller e Karnopp (2015) apresenta um levantamento de alguns livros de autobiografia, romances, contos e poemas escritos na língua portuguesa por autores surdos, sobre as experiências de ser surdo, e destinados ao público surdo ou ouvinte. Outro gênero de literatura surda escrita em português é o infantil, destinado às crianças surdas que também fala das experiências de personagens surdos.
Há muitos exemplos de literatura surda criada e apresentada nas línguas de sinais, que seguem as características: 1) ser feita por surdos; 2) tratar da experiência de ser surdo e do conhecimento da cultura surda; 3) ter o objetivo de atingir um público surdo e de 4) ser apresentada em Libras. E esse quarto critério, literatura surda produzida em Libras, é o foco de nossos estudos neste livro.
3.2.1. Literatura surda em Libras
Literatura em qualquer língua de sinais é criada em uma língua de modalidade gestual-visual-espacial. “Literatura em língua de sinais” traz uma perspectiva diferente para essa forma de “literatura surda”, em que o foco está na língua. O conceito de “língua de sinais” inclui todas as línguas de sinais mundiais em comparação ao conceito de “língua oral”, que engloba todas as línguas de modalidade oral-auditiva, portanto as línguas orais. Essa literatura é caracterizada por ser produzida em uma língua de sinais, como literatura em ASL (americana), literatura em BSL (britânica), em DGS (alemã) e em Libras (brasileira). Literatura em Libras, então, é um tipo de literatura em língua de sinais, que faz parte da literatura surda brasileira.
Nessa perspectiva, não se destaca tanto a origem da literatura. Esta pode ser de origem surda, criada e apresentada por um autor surdo. Mas algumas produções de literatura em Libras são traduções ou reapresentações da literatura brasileira (fora da comunidade surda), e, assim, de origem não surda. A tradução pode ser mais ou menos fiel ao texto original; as mais fiéis acontecem frequentemente na criação de textos bilíngues educacionais com objetivo de proporcionar acesso à literatura de uma língua oral, muitas vezes para o ensino, como, por exemplo, uma tradução de português para Libras da história de O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, ou de O Alienista, de Machado de Assis. Nas adaptações apresentadas em Libras, a obra original passa por alguns ajustes para mostrar a perspectiva dos surdos, podendo, por exemplo, incluir alguma personagem surda que não se encontrava na forma do original.
Algumas adaptações soam mais como um reconto, como o conto de fadas Cinderela Surda, e não precisam seguir um texto escrito, mas são baseadas nas histórias originais dos ouvintes. A história de Cinderela é mundial, já as histórias do Curupira ou do Negrinho do Pastoreio pertencem à literatura folclórica brasileira, com origem na sociedade dos ouvintes brasileiros, mas que foram contadas em Libras. Observamos, também, que a origem da literatura em língua de sinais não precisa ser necessariamente de textos escritos. Há muitos exemplos de traduções de filmes, peças de teatro, desenhos animados e cartuns.
Apesar de não ser de origem surda e de não tratar do assunto específico das vidas dos surdos, muitas vezes, essa literatura em Libras traduzida ou adaptada é apresentada por surdos, destinada a surdos, na língua gestual-visual-espacial dos surdos e faz parte da literatura surda. Há traduções feitas por ouvintes incluídas na literatura surda porque o que importa dentro dessa perspectiva é a língua de apresentação e o público-alvo.
3.2.2. Modalidade de literatura em Libras: sinalizada e escrita
Assim como a língua portuguesa pode ser falada e escrita, também a Libras existe em duas modalidades, sinalizada e escrita, embora a Libras escrita ainda não seja muito comum.
A literatura surda em língua de sinais se realiza, normalmente, na modalidade sinalizada e muitos elementos dessa forma de arte são fundamentados no fato daquela ser uma literatura visual “de performance” e “do corpo”, que existe apenas quando uma pessoa a apresenta. Assim, é quase impossível separar o corpo do artista do texto da narrativa ou do poema. Nas literaturas escritas, tais como a brasileira, escrita em português, estamos acostumados à ideia de que o texto pode ser separado do autor e quando o lemos recebemos pouca informação sobre o aspecto da pessoa que o escreveu. Já, na literatura sinalizada em Libras, podemos ver o artista como ator e vemos os poemas, as narrativas ou as piadas pelo meio visual através do seu corpo.
Entretanto, a literatura surda em língua de sinais não se desenvolve somente na modalidade sinalizada. Existem alguns exemplos de literatura em Libras escrita, especialmente, e atualmente, em SignWriting. Esse sistema já foi usado para as histórias infantojuvenis traduzidas ou adaptadas por razões didáticas (MARQUEZI, 2019). O livro Cinderela Surda (SILVEIRA; KARNOPP; ROSA, 2003) é um exemplo, bilíngue, escrito em português e Libras.
Outros livros escritos em SignWriting são textos originais em Libras, como as lendas indígenas Onze histórias e um segredo - Desvendando as lendas Amazônicas, de Taísa Sales (2016). Também há poemas em Libras, criados como literatura surda e escritos em SignWriting, como os poemas dos artistas Maurício Barreto e Kácio Evangelista. O poema abaixo, Comunidade, de Evangelista (2018) mostra as possibilidades da literatura em Libras escrita. Podemos ver que os sinais escritos SURDO, OUVINTE e SINAIS são organizados para criar uma imagem língua (Figura 1).
Figura 1: Comunidade, de Evangelista (2018) Fonte: Evangelista (2018)
3.2.3. Literatura Visual?
Até esse ponto, falamos de literatura produzida numa língua, em Libras ou em português. A literatura visual é uma categoria de literatura que dá prioridade às imagens visuais, especialmente às produções não verbais. Assim, os teatros sem palavras e a mímica, os livros de imagem, os gibis e as histórias em quadrinhos fazem parte também da literatura visual. Muitas dessas formas de literatura visual produzidas por pessoas ouvintes são acessíveis à comunidade surda por não usarem uma língua baseada no som, apesar de não serem literatura surda (porque não satisfazem nenhum dos nossos quatro critérios de literatura surda). Também, há literatura visual não verbal que não utiliza a Libras (por exemplo mímicas e histórias em quadrinhos), mas que faz parte da literatura surda pelo fato de ser feita por surdos, por abordar assuntos que destacam as experiências dos surdos e destinada ao público surdo.
Porém, lembramos que a literatura em Libras é verbal, embora as línguas de sinais sejam gestuais-visuais-espaciais e a literatura surda tenha o objetivo de criar imagens claras para o público.
Existe um continuum de linguagem com a intenção de criar imagens visuais em forma de gestos. Os gestos vão além de uma língua de sinais para criar literatura visual sinalizada, que não é a língua, mas derivada da estrutura visual desta; essa é uma técnica chamada Vernáculo Visual ou VV. Falaremos mais a respeito nos capítulos 7 e 10, mas precisamos ainda de muito mais pesquisa sobre essa arte para entender o seu lugar na literatura surda. Golf Ball, de Stefan Goldschmidt, um alemão surdo, é um bom exemplo de VV. Esse é um conto sobre uma bola de golfe, que apresenta imagens fortemente visuais, sem qualquer vocabulário de nenhuma língua de sinais, mas que utiliza gramaticalmente o aspecto viso-espacial das línguas de sinais. No Brasil, Tinder, por Anna Luiza Maciel, é outro exemplo que recorre à técnica.
3.3. Diversas perspectivas sobre a categorização de literatura
Vimos que há diversos elementos que fazem parte da categorização da literatura surda. É assim em qualquer tipo de literatura. Algumas definições de tipos de literatura falam do material produzido durante um determinado período (por exemplo: “literatura do século XIX”), outras destacam literatura destinada a um grupo em particular (como a “literatura infantil”) ou produzida por autores de um país ou de um grupo particular (“literatura francesa” ou “literatura negra”). Um conjunto de literatura pode ser aquilo que foi produzido sobre um determinado tópico (“literatura de viagens” ou “literatura policial”) e outra divisão possível é literatura escrita ou literatura oral. Atualmente, a palavra "literatura" passou a incluir mais do que a palavra escrita e pode significar uma forma especial de se trabalhar criativamente com a língua em qualquer modalidade. Existem outras categorias, mas essas servem para mostrar que podemos ver a literatura surda a partir de diversas perspectivas.
Como categorizar o livro O Quinze, de Rachel de Queiroz? É literatura brasileira (pensando no país de origem da autora, no contexto da história e na nacionalidade dos leitores esperados)? É um romance (por seu gênero literário)? É literatura escrita em português (acessível por leitores em Portugal, Angola ou Moçambique além do Brasil, por exemplo)? É literatura feminina (por ser escrita por uma mulher e pelo fato de o assunto ter características mais direcionadas às leitoras femininas)? É literatura modernista, do século XX (o livro foi escrito em 1930)? (Figura 2 mostra um resumo).
Figura 2: Como categorizar o livro O Quinze, de Rachel de Queiroz?
Assim, vimos que um livro se encontra dentro de muitas categorias, todas entrelaçadas. Do mesmo modo, podemos ver que há diversas formas de se categorizar a literatura da comunidade surda. Podemos olhar para essa literatura de várias maneiras, dependendo do foco, observando seus produtores, seu público, o assunto, sua língua e se é sinalizada ou escrita. Vale destacar que, as produções de literatura surda não necessitam cumprir todos os critérios já destacados nesse capítulo: 1) ser feita por surdos; 2) tratar da experiência de ser surdo e do conhecimento da cultura surda; 3) ter o objetivo de atingir um público surdo e 4) ser apresentada em Libras.
O poema Lei de Libras, de Anna Luiza Maciel e Sara Theisen Amorim, contempla esses quatro critérios: foi criado e apresentado por autores surdos, fala de um assunto da comunidade surda (o prazer de usar Libras), é destinado principalmente ao público surdo e foi apresentado em Libras. Porém, muitas produções cumprem apenas três ou até dois critérios e mesmo assim fazem parte da literatura surda.
A narrativa O Negrinho do Pastoreio, de Roger Prestes, foi apresentada em Libras por um autor surdo e é destinada principalmente ao público surdo, mas tem origem não surda e não fala da experiência dos surdos.
O Livro A Verdadeira Beleza, de Vanessa Lima Vidal, foi escrito por uma autora surda e fala da experiência de uma pessoa surda. Não está apresentado em Libras, mas em português, e o público esperado é tanto de ouvintes quanto de surdos.
A história A Rainha das Abelhas, contada por Mariá de Rezende Araújo, foi apresentada por uma tradutora ouvinte e tem origem não surda (por ser um conto de fadas dos irmãos Grimm), então não fala da experiência dos surdos. Porém, está contada em Libras e é destinada ao público surdo.
A narrativa Golf Ball, por Stefan Goldschmidt, é feita por um ator surdo e destinada (principalmente) aos surdos, porém não fala da experiência surda e não usa Libras, porque usa a técnica VV, que está na fronteira da comunicação verbal-não verbal.
A seguinte tabela mostra essas possibilidades em resumo
Com essas ideias em mente, entendemos que a literatura surda pode ser estudada de diversas abordagens e que a literatura em Libras faz parte fundamental de tudo.
3.4. Atividade
Assista novamente aos vídeos:
- As Borboletas de Vinicius de Moraes, traduzido por Wilson Santos.
- As Brasileiras, de Klícia Campos e Anna Luiza Maciel.
- Como veio alimentação , de Fernanda Machado.
- Leoa Guerreira, de Vanessa Vidal.
- Hino Nacional Brasileiro, de Bruno Ramos.
- O Negrinho do Pastoreio, de Roger Prestes.
- Unexpected moment (“Momento inesperado”), de Amina Ouahid e Jamila Ouahid.
Para cada um, decida:
- É literatura surda?
- É literatura em língua de sinais?
- É literatura em Libras?
- É literatura sinalizada?
- É literatura em VV?