Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 3 - Elementos de linguagem estética


14. Gêneros, tipos e formas de poesia em Libras

objetivo

14.1. Objetivo

Neste capítulo, apresentaremos e refletiremos sobre alguns tipos de poemas em línguas de sinais. Uma palavra muito presente nas discussões acerca das categorias de poesia é “gênero”. Vimos nos capítulos 03 e 07 que esse conceito ainda não é bem definido, tampouco há uma categorização “correta” ou “errada”, mas simplesmente “útil”. Para conhecer uma seleção de poemas de tipos diferentes, traremos alguns categorizados de acordo com seu estilo, sua forma, origem e seu conteúdo.

O campo da poesia em Libras está crescendo muito rápido e ainda não está bem delimitado. Com as mudanças atuais, fica complicado determinar se um texto é ou não um poema, e fica ainda mais difícil inseri-lo em um gênero de poesia. Muitos poetas e artistas criam o seu próprio estilo, sem basear seus trabalhos numa tradição poética conhecida. Os pesquisadores americanos Klima e Bellugi (1979) também afirmaram que o mesmo aconteceu nos EUA nos anos 70. Cada vez que um artista criava uma nova forma de poesia, levava um tempo para as pessoas aceitarem (ou não) a produção. Em 1939, o surdo americano Eric Malzkuhn (conhecido como “Malz”) criou um tipo de poesia para a tradução do poema “Jabberwocky”35 em ASL. Um trecho dessa tradução está disponível no documentário “The Heart of the Hydrogen Jukebox”, no tempo de 00:12:42. Ele afirmou: “As pessoas ainda não estavam preparadas para isso. Um terço do público achava que eu era louco, outro terço achava que eu era um gênio. O último terço não conseguia se decidir se me achava louco ou gênio”36. O poeta Peter Cook relatou que “Antes de Malz, a língua de sinais era muito formal e controlada. Malz era completamente diferente, ele tomou outro caminho.”

Em 1995, o pesquisador Alec Ormsby afirmou que em ASL

*nenhum conjunto de fórmulas poéticas tradicionais é transmitido de geração para geração. Vários usos padronizados e folclóricos da ASL são transmitidos, mas estes não são considerados textos poéticos, seja dentro da comunidade surda ou fora dela. Até agora, as estruturas da poesia em ASL, como Klima e Bellugi observam são, em geral, individuais e não convencionais (p. 169, tradução nossa). *

Ormsby observou que, por isso, os poetas de ASL “têm poucas convenções que os unem”37. Ele usou, na sua exposição, a palavra em inglês “bind”, a qual remete a dois sentidos: unir e amarrar. As convenções poéticas em qualquer cultura podem unir poetas, criando um gênero coeso com convenções entendidas que apoiam e guiam ou podem os amarrar, limitando as suas criatividades. Quase 25 anos depois dessa afirmação, vemos que em Libras essa situação já mudou. Hoje, existem convenções que unem os poetas, dando-lhes apoio e abrindo novos caminhos poéticos para se seguir, mas que não devem “amarrá-los”.

lista de videos

Neste capítulo, vamos falar de muitos poemas. Já conhecemos a maioria, mas também há alguns que ainda não vimos:

14.2. Gêneros definidos pela origem dos poemas

Alguns gêneros de poesia em Libras vêm do folclore surdo, outros tipos de poema surgem de tradições poéticas de outras culturas, seja da cultura de poesia de ouvintes ou de surdos estrangeiros.

14.2.1. Traduções

Os poemas traduzidos são de um gênero que é definido pela sua origem. Muitas pessoas entendem que não é possível traduzir um poema porque (nas famosas palavras atribuídas ao poeta americano Robert Frost) a poesia “é aquilo que é perdido na tradução tanto em prosa como em verso” (tradução nossa). É possível reproduzir um poema escrito de uma língua para outra por meio da tradução, mas as formas poéticas, o efeito artístico das palavras e os sentidos culturais serão tão distintos que o tradutor sabe que não pode criar o mesmo efeito na nova língua por meio de palavras equivalentes. Isso não impede a tradução de poemas entre diversas línguas, e muitas dessas traduções enriquecem a cultura da língua alvo. Geralmente, no Brasil, as traduções de poemas para o português são feitas por poetas com habilidades nas tradições poéticas da cultura brasileira. Os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, por exemplo, eram poetas que traduziam muitos poemas para a língua portuguesa.

Podemos ver poemas em Libras que são traduções. A língua de origem pode ser o português ou outra língua de sinais. As traduções são feitas por poetas surdos bilíngues ou por tradutores ouvintes. Atualmente, no Brasil, não há muito a exigência de que um tradutor seja poeta e alguns tradutores nem sabem bem as normas poéticas da comunidade surda. Por isso, nem todas as traduções para a Libras são poéticas.

Historicamente, as traduções de poemas escritos eram muito importantes para a expressão estética das línguas de sinais. Embora o conteúdo não seja criado pelo poeta surdo, a forma da linguagem na tradução criou uma forma de Libras poética que faz parte das raízes da poesia da Libras atual. Por isso veremos elementos parecidos com os de poemas escritos em outros gêneros de poesia em Libras. Antigamente, esse era o único tipo de poesia feita por surdos em língua de sinais em alguns países porque as pessoas acreditavam que poemas eram coisas que não pertenciam às comunidades surdas. Até hoje, a tradução de poemas do português para a Libras é um gênero feito por poetas surdos e tradutores (existem muitos exemplos na internet). As traduções dão algumas sugestões sobre o que é um poema em Libras.

O poema em sinais mais antigo já registrado é a tradução de um poema escrito intitulado A morte de Minnehaha. Foi criado por Mary Williamson Erd em 1913, traduzido do poema Hiawatha, escrito em inglês por Henry Longfellow. É uma interpretação que mescla dança, teatro e ASL estética.

Já vimos que as traduções podem abrir novos caminhos para os poemas em sinais. A tradução de Jabberwocky (em português, Jaguadarte) de inglês para ASL, em 1939, liberou os artistas da época para experimentarem com a forma. Nos anos 80, os alunos do colégio NTID, nos EUA, brincavam com os sinais criando imagens semelhantes às imagens de Jabberwocky. Um desses alunos era Peter Cook, um dos poetas de ASL mais conhecidos hoje em dia. O poema de Malz também influenciou os poetas brasileiros. O Jaguadarte em Libras, interpretado por Aulio Nóbrega (do qual já falamos), foi inspirado na tradução de Malz.

Mas ainda são poucas as traduções de poemas de outras línguas de sinais para a Libras. Isso pode acontecer em parte porque muitos poemas têm uma forma tão visual que o público os entende sem a necessidade de tradução. Mas existem exemplos dessas traduções (ver capítulo 08). O poema Cinco Sentidos em Libras é uma tradução feita por Nelson Pimenta de Five Senses, poema de Paul Scott em BSL.

14.2.2. Poemas-homenagem

Poemas-homenagem são categorizados pela origem. Nesses casos, uma pessoa pode simplesmente copiar e reapresentar um poema de uma outra pessoa. Da forma mais extrema é um desafio muito grande porque o sinalizante não copia simplesmente os sinais, mas sim, a forma de apresentação deles, com o ritmo, as expressões faciais e os movimentos do corpo parecidos com os do original. Fazer esse tipo de homenagem é uma tarefa muito boa para os aprendizes de poesia, porque na reprodução do poema eles descobrem a complexidade e a riqueza da performance original.

No entanto, criar poemas-homenagem não significa apenas copiar um poema, mas sim adaptá-lo ou tomá-lo como base para criar um novo poema. Isso faz parte da tradição folclórica surda, para a qual as produções culturais da comunidade são parte do coletivo e não pertencem a um indivíduo apenas. As piadas e os contos de fadas, por exemplo, não têm um autor nas tradições folclóricas brasileiras, e cada pessoa pode recontar e adaptar esses artefatos culturais do seu próprio jeito. Para a comunidade surda, os poemas também fazem parte da comunidade. Por exemplo, Tree, de Paul Scott, foi adaptado por Fernanda Machado em Saci e por André Luiz Conceição em Árvore. Os dois poemas são diferentes do original, mas mantém conceitos linguísticos fundamentais deste como o uso de classificadores e de incorporação, a criação de classificadores originais, a manutenção do antebraço na horizontal (como a terra enquanto imagina a presença da árvore) e a passagem do tempo através do movimento circular do sol.

14.2.3. Poemas malucos

Os poemas malucos também surgem de outro poema. É um gênero de poesia lúdico e engraçado. Primeiro, o poeta escolhe um poema, por exemplo um bem conhecido, recentemente apresentado ao público ou criado pelo próprio poeta. Em seguida, são selecionados cinco sinais aleatoriamente. O poeta pode solicitar os sinais ao público ou escolhê-los aleatoriamente a partir de um dicionário. Depois, as regras do jogo exigem que ele use esses cinco sinais no mesmo poema, criando um poema com um sentido diferente. As imagens estranhas e até esquisitas geradas por esse jogo são engraçadas e divertidas e criam seu próprio efeito estético. Veja como exemplo, o poema maluco de Daltro Roque Carvalho da Silva Junior. Começa com um poema dueto curto (feito com Victória Hidalgo Pedroni). Com a escolha aleatória das palavras aerodeslizador, porta, vento, dentaduras e cuecas ele criou um poema maluco.

14.3. Gêneros de apresentação do poema

Os gregos antigos dividiam os poemas nas categorias lírico, dramático e épico, dependendo da “voz” do poema, ou seja, da sua forma de apresentação. Os líricos eram apresentados como se o poeta falasse e compartilhasse seus pensamentos e sentimentos com o público. Nos poemas dramáticos, os personagens falavam por si só e nos épicos havia uma mistura entre a fala do narrador e a dos personagens. É importante entender que, apesar de ter uma longa tradição, essa divisão muitas vezes não é tão útil hoje para se categorizar a literatura em Libras. A literatura surda em Libras não precisa seguir essas mesmas categorias, porque os contextos socioculturais e históricos são diferentes de outros contextos literários. O conceito de “voz”, por exemplo, é diferente, mas vemos que existem poemas que têm elementos parecidos com esses gêneros tradicionais.

14.3.1. Poemas líricos

Os poemas líricos são muito comuns nas tradições literárias europeias, porém os encontramos menos nas línguas de sinais. Esse gênero de poema tem diversas características nas tradições de literaturas europeias. Antigamente, eles eram cantados (e acompanhados historicamente por uma lira ou harpa – daí surgiu o nome lírico), mas hoje podemos dizer que um poema lírico é caracterizado estruturalmente por rimas e em conteúdo pela expressão de opiniões, experiências ou emoções pessoais, normalmente falando do “eu”. Muitas canções que fazem parte da música popular brasileira, por exemplo, são compostas em primeira pessoa38, usam o pronome “eu” e falam muito do amor e dos desejos do personagem. É importante entender que esse “eu” não se refere ao autor, nem ao cantor, mas a um personagem que apresenta as emoções de um “eu-poético”. Quando Elis Regina canta, em Romaria, “Sou caipira, Pirapora/Nossa Senhora de Aparecida/Ilumina a mina escura e funda/O trem da minha vida”, entendemos que ela não é uma caipira. Nem pensamos que o autor, Renato Teixeira, seja o caipira que sofreu essas experiências. A letra da música lírica fala das emoções de um “eu” imaginário caipira, que não as do “eu” autor ou artista.

Os poemas líricos que seguem esses critérios não são tão comuns em Libras. Muitos exemplos de poesia lírica em outras línguas de sinais vêm dos anos 70 e 80, uma época em que a poesia sinalizada era mais influenciada pelas línguas orais. Como vimos no capítulo 13 (e veremos mais no capítulo 18), o conceito de rima não é igual em Libras e em português e por isso a rima não faz parte necessariamente de um gênero de poesia lírica em Libras. No entanto, existem poemas com o ponto de vista de uma pessoa só e pode-se considerar que nesse caso o “eu” fala das opiniões e dos desejos do próprio artista. Às vezes, o poeta não usa o sinal eu e não está claro se ele incorpora o “eu” ou outras pessoas. Por isso, até os poemas em Libras que têm elementos líricos também têm aspectos mais dramáticos.

Em ASL, temos exemplos desse tipo de poema daquela época, como Lone and Sturdy Tree (em português, “Árvore solitária e firme”), de Clayton Valli (The Heart of the Hydrogen Jukebox - 01:32:13), e Defiance (em português, “Desafio” ou “Rebeldia”), de Dorothy Miles The Heart of the Hydrogen Jukebox 00:24:26).

Um exemplo de poema lírico em Libras, que fala de assuntos mais pessoais é Meu Ser é Nordestino, de Klícia Campos.Nele, a poeta descreve emoções como angústia, sofrimento e opressão, mas também coragem, determinação e amor. O poema usa configurações de mãos repetidas, criando um efeito parecido com o conceito de rima em português. O poema dura 00:01:42, mas é apenas nos últimos 16 segundos que ela usa um sinal que se refere ao “eu”. No poema inteiro, entendemos que a poeta mostra o “eu” do poema, mas apenas por incorporação. Não importa se a própria autora e atriz Klícia andou a cavalo na caatinga ou não, com um fuzil nas costas, o poema ainda assim mostra o “eu”.

Um poema lírico em Libras, que fala de amor, é Amar é também silenciar,, de Rafael Lopes dos Santos (que usa o pseudônimo Rafael Lelo). Embora ele não use o sinal eu, o “eu” é apresentado pela incorporação de um personagem que é o eu-poético.

Um tópico muito rico da poesia lírica em ASL feita nos anos 70 e 80 não fala sobre emoções românticas e o amor, mas sim sobre aquelas ligadas à experiência de se aprender a língua de sinais (podemos dizer que falam do seu amor pelos sinais) e, por outro lado, das frustrações da educação oralista. Vemos isso também nos poemas líricos em Libras. O poema Mãos do Mar,, de Alan Henry Godinho, fala do sofrimento da experiência de se receber uma educação baseada no oralismo e da libertação com a Libras. O poema Lei de Libras,, de Sara Theisen Amorim e Anna Luiza Maciel, descreve as emoções e o prazer de quando as poetas usam a Libras. Cada artista apresenta as emoções como se fossem suas por meio de incorporação, mas entendemos que podem ser as de qualquer pessoa surda brasileira que ame a Libras. O último sinal é “nós”, significando que as emoções pertencem às personagens do poema.

Homenagem Santa Maria/RS, de Alan Henry Godinho, é um poema elegíaco que descreve o luto. Este é normalmente visto como um subgênero dos poemas líricos.

14.3.2. Poemas narrativos: dramáticos e épicos

Conforme Peters (2000) e Rose (1992 e 2006), os poemas em línguas de sinais vêm da tradução de contação de histórias. Por isso, muitos poemas contam-nas por meio de uma linguagem poética, mas com elementos mais teatrais ou mais narrados. Poemas como Tinder, de Anna Luiza Maciel, e Voo Sobre Rio, de Fernanda Machado, contam histórias curtas apresentadas com pouca narração. Este mescla a descrição narrada do passeio da ave com a apresentação do encontro entre os dois pássaros que namoram.

Poemas narrativos podem falar de assuntos históricos e de eventos culturais. Lutas surdas, de Alan Henry Godinho, começa com a fala pessoal do surdo como cidadão brasileiro e passa para uma narração dramática que conta sobre a luta da comunidade para manter o Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES. Por causa do ritmo do poema, da repetição, dos sinais criativos e das metáforas (entre outros elementos poéticos), dizemos que é um poema, porém que narra mais e descreve menos.

14.4. Gêneros de poemas com parâmetros de língua delimitados

Todos os poemas em Libras devem seguir algumas regras poéticas para criar um efeito poético. No entanto, o gênero de alguns poemas é definido pelo objetivo de seguir uma regra específica relacionada à forma, por exemplo a limitação de um parâmetro dos sinais como o de uma configuração de mão, movimento, local no espaço ou orientação.

Alguns poemas de forma delimitada são muito simples. Por exemplo, para os aprendizes de poesia em Libras, é necessário apenas criar uma história rítmica com alguns sinais da mesma configuração de mão. Um exemplo de poema simples é Feliz Natal, de Rosana Grasse, em que a poeta usa a mesma configuração de mão, a da letra F do alfabeto manual, para todos os sinais, embora normalmente eles não usem essa configuração de mão para suas produções. É um poema curto que ela utiliza para desejar às amigas um feliz natal. O sinal feliz em Libras é um tipo de empréstimo do português em que a configuração de mão tem a forma da letra manual F e o movimento é o da letra Z. Usar a configuração de mão em F no poema inteiro dá um tom de felicidade especial a todos os sinais.

Outros poemas são mais extensos, mais criativos e mais desenvolvidos. V & V de Fernanda Machado, é um poema delimitado, que exige apenas o uso da configuração de mão na forma de V, sempre com simetria de reflexo, com uma mão invertida em relação à outra. Além de ser um poema estético agradável, cria um grande desafio físico para a sua performance.

Em outros poemas, o poeta pode escolher um padrão de desenvolvimento delimitado, que faz parte do método do poema. Em Cinco Sentidos, de Nelson Pimenta, cada novo trecho deve focar no próximo dedo da mão não dominante – do polegar ao indicador, ao médio, ao anelar, até chegar no mindinho. Fugir do padrão quebra o efeito poético. Em Como Veio Alimentação, de Fernanda Machado, o poema também segue o número de dedos, de um (indicador) a dois (indicador e médio), numa ordem crescente até chegar nos cinco dedos com a mão aberta.

Já vimos no capítulo 07 que a literatura em Libras inclui as histórias de ABC, de números e de configuração de mão. Muitas delas são contadas mais em prosa do que em forma poética. Porém, vimos que as diferenças entre prosa e poesia estão dispostas numa escala, e algumas histórias têm um tipo de ritmo, metáfora e criatividade que as colocam mais perto do conceito de poesia. A repetição na história de ABC Arrumar, Passear, de Jéssie Rezende, tem um ritmo regular que cria um efeito mais poético.

Outros jogos poéticos em Libras usam uma sequência de configurações de mãos baseada nas letras manuais de uma palavra. O acróstico (em que cada sinal tem a configuração da letra de uma palavra) é um exemplo desse tipo de jogo. Normalmente, os sinais devem ter uma relação temática com o sentido da palavra. Assim, os sinais num poema acróstico de um gato, devem seguir as configurações de mão das letras G, A, T e O, sempre falando do aspecto visual ou do comportamento do animal. O poeta americano Clayton Valli (1995) criou alguns poemas complexos desse tipo, como Something not Right (“Algo que não está certo”). Neste, cada sinal tem a configuração de mão das letras que soletram “education” (“educação”) e falam das falhas do sistema educacional dos surdos.

Em poemas de perspectivas múltiplas, o objetivo é “colocar a linguagem no primeiro plano” e criar uma desfamiliarização ao mostrar cenas habituais através de perspectivas fora do comum. Vimos, no capítulo 10, que narrativas fílmicas em Libras criam diversas perspectivas, dos planos mais aproximados aos mais distantes. Quando esse recurso é produzido com outros elementos poéticos, tais como brevidade, ritmo, metáfora e sinais criativos, tem-se o seu próprio gênero de forma. O poema Tinder, de Anna Luiza Maciel, é um exemplo. Ave 1 x 0 Minhoca, de Marcos Marquioto, é criado com o objetivo de seguir alternâncias entre a perspectiva da minhoca e a da ave. O poema é curto e gera imagens fortes, com um ritmo que repete as mesmas ações dos animais, cada vez com classificadores diferentes.

Dentro da categoria de poemas com parâmetros de língua delimitados vemos os poemas de VV, em que o poeta vai além da Libras e apresenta uma forma de mímica adaptada para língua de sinais. Esses poemas, muitas vezes, têm um ritmo forte com muita repetição e simetria, normalmente narram um evento, mas também têm descrições detalhadas.

14.5. Gêneros de forma adaptados de outros gêneros

14.5.1. Haicai

O haicai é um gênero em Libras que vem de um gênero da comunidade ouvinte, mas que foi adaptado para as necessidades das línguas de sinais. Esses poemas são curtos (algumas pessoas exigem o máximo de seis sinais) e apresentam uma imagem visual muito forte, sem enredo, muitas vezes falando da natureza ou de uma estação do ano. São de origem japonesa, cujas regras exigem que sejam divididos em três versos, cada um com um número específico de sílabas. Muitas vezes, os poetas quebram as regras da forma para criar poemas com outros efeitos, mas elas existem, e é um prazer ver o desvio da sua forma padrão.

Os haicais têm sido criados em ASL nos EUA desde a década de 70, sendo originalmente traduzidos de haicais escritos em inglês, depois surgindo como produções originais em ASL (KLIMA; BELLUGI, 1979). Eles se adaptam muito bem às línguas de sinais, porque com eles podemos criar imagens visuais a partir de poucos sinais. Os primeiros haicais em ASL seguiam a necessidade de serem apenas descritivos e não terem enredo. Porém, os poetas de línguas de sinais começaram a criar haicais com ação e com isso surgiram narrativas muito curtas e muito visuais. A pesquisadora e professora Michiko Kaneko trabalha com poetas surdos no Reino Unido para criar haicais em BSL desde 2007. O desenvolvimento do gênero lá se deu da sugestão de que poderia ter um desfecho inesperado. O poeta britânico Paul Scott trouxe essa ideia para o Brasil quando ministrou uma oficina para poetas surdos brasileiros em 2013. Hoje, muitos haicais em Libras têm um desfecho imprevisível ou fortemente emocional.

O poema Peixe, de Renato Nunes, é um bom exemplo de haicai em Libras. Dura apenas 14 segundos e tem seis ou sete sinais (a divisão entre os sinais não é fácil na poesia). Usa apenas a mão aberta como configuração de mão. Fala da água e de um peixe, seguindo a regra de se falar sobre a natureza. Fala do sol, sugerindo o verão. Usa apenas os classificadores com expressão facial intensa para criar uma imagem forte. O desfecho inesperado acontece quando o peixe bate no vidro do aquário e entendemos que ele não está livre na natureza.

14.5.2. Renga

A renga também vem da tradição japonesa, sendo tradicionalmente uma série de poemas de haicai. A renga foi introduzida e promovida na Europa no ano de 2010 pela professora Michiko Kaneko e pelo poeta ouvinte reconhecido pelos poemas de renga em inglês Alan Summers. Hoje esse gênero existe em muitos países, por exemplo na Irlanda (veja Fruit - em português “Frutas”), no Reino Unido (veja World II - em português “O mundo II”), Suécia e África do Sul. Também temos renga brasileira em Libras. Veja um exemplo no link https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/176319.

Renga é um poema coletivo e colaborativo. Um grupo de pessoas (normalmente de cinco a dez) cria um poema em conjunto, cada um contribuindo na sua vez. Cada pessoa sinaliza seu próprio haicai, ou pelo menos apresenta um trecho poético de alguns sinais, antes de passar para a próxima pessoa que vai continuar com a trama, muitas vezes começando com um sinal que usa a mesma configuração de mão do último sinal usado pela pessoa anterior. O momento da transição entre duas pessoas é muito importante na renga e deve ser planejado cuidadosamente. Nesse momento, os dois participantes podem interagir, criando um dueto curto (veja a próxima seção), em que os sinais são ligados pela forma e pelo sentido.

Como é um produto de um grupo de pessoas trabalhando juntas, a renga não é apenas um artefato, mas também um evento e um processo. Esse tipo de poesia se encaixa bem nas tradições surdas por ser coletiva, e é uma forma muito boa para aprendizes menos confiantes, porque estes podem apresentar um poema com o apoio do grupo.

14.5.3. Duetos

Embora normalmente esperemos ver um poema apresentado por apenas um artista, os duetos criam efeitos poéticos especiais por serem apresentados por duas (ou mais) pessoas. Elas podem estar lado a lado, como no poema As Brasileiras, de Anna Luiza Maciel e Klícia Campos. Os artistas de um dueto podem interagir fisicamente (por exemplo, nesse poema, as duas poetas criam juntas o contorno do Brasil com as mãos em contato e cada uma toca no peito da outra para dizer “você”). Além disso, o conteúdo que os dois participantes de um dueto sinalizam pode ter uma relação oposta ou algum tipo de contraste. No poema As Brasileiras, as duas pessoas contrastam as características do interior rural do Nordeste com as da grande cidade de São Paulo. Vemos uma igrejinha humilde e uma catedral magnífica, poucas pessoas e uma multidão, uma cena de seca e uma de chuva. Os artistas podem, também, interagir com os sinais para criar um efeito poético. Em As Brasileiras, também, a Paulistana joga para fora os resíduos de um copo de água e a Nordestina, ao lado dela na cena, mas a milhares de quilômetros de distância no poema, pega a água em seu copo.

As pessoas podem, ainda, estar uma por trás da outra, como no exemplo do poema A Economia, de Sara Theisen Amorim e Ângela Eiko Okumura (ver também capítulo 15).

14.6. Pelejas ou batalhas poéticas

As pelejas ou batalhas poéticas são um tipo de dueto, em que o objetivo é criar uma imagem de uma ideia cada vez maior do que a anterior. Um exemplo bem conhecido no Brasil é o do ASL Cowboys – The Fastest Hands in the West (em português “As mãos mais rápidas d’oeste”). Veja a versão homenagem de Jake Schwall The Fastest Hand in the West.

Lembramos que os poemas existem numa escala entre poesia e prosa, e nesse exemplo podemos ver que, apesar de ter uma estrutura narrativa, a peleja segue um ritmo forte e usa os classificadores de uma forma muito criativa e visual. Pode contar sobre objetos cada vez maiores (como as armas no poema dos cowboys), situações mais esquisitas, emoções mais fortes ou sentimentos mais intensos. Podemos dizer que, de certa forma, a luta entre as mãos no poema V & V de Fernanda Machado é uma peleja entre as mãos, que vai cada vez criando uma imagem mais intensa – até que elas caem.

resumo

14.7. Resumo

Esse capítulo não falou de todos os gêneros de poesia em Libras. Do rápido desenvolvimento pelo qual a poesia em Libras tem passado, podemos esperar cada vez mais gêneros surgindo no Brasil, criados pelos artistas brasileiros ou emprestados de línguas de sinais ou de línguas orais de outros países. Mostramos que há muitos tipos diferentes de poemas que podemos apreciar e que não existe uma maneira só de categorizar toda a riqueza da poesia em Libras. Vimos que a origem dos poemas varia e que a tradução era - e ainda é - uma fonte de poemas. Os próprios gêneros poéticos também podem ter origem em outras culturas (surdas ou ouvintes) adaptados para a Libras. O papel do poeta e do artista na apresentação de poemas cria obras mais narrativas ou teatrais. No entanto, tudo contribui para um tecido entrelaçado de poemas visuais de muitos gêneros.

atividade

14.8. Atividade

Vamos criar uma renga!

Quais procedimentos você vai seguir? Dê uma olhada nas “regras” de renga detalhadas nesse capítulo e assista a algumas rengas na internet para se inspirar. Lembramos que qualquer poeta pode quebrar as “regras” por motivos poéticos a qualquer momento.

Em inglês “Jabberwocky”, escrito por Lewis Carroll, traduzido para português por Augusto de Campos com o título “Jaguadarte”. Entrevista no documentário The Heart of the Hydrogen Jukebox, de Nathan Lerner e Feigel, 2009, no tempo de 00:14:11. Tradução nossa. "ASL poets have few conventions to bind them" (p. 173, tradução nossa). No sentido gramatical, a primeira pessoa do singular significa a pessoa que fala.