Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 4 - A relação entre a sociedade e a literatura em libras


21. As mulheres e a literatura em Libras

objetivo

21.1. Objetivo

Neste capítulo, investigaremos a participação das mulheres na literatura em Libras e a sua contribuição à literatura, apesar da desigualdade existente na representação delas em produções ao vivo e gravadas disponibilizadas na internet. A literatura feita por mulheres surdas se encaixa nas categorias de literatura surda, literatura em Libras, literatura feminina e literatura brasileira (SUTTON-SPENCE, 2019).

lista de videos

Veremos exemplos de quatro vídeos:

21.2. Desigualdade na representação de mulheres na literatura em Libras

Muitas vezes, não percebemos que as descrições de literatura têm uma tendência sutil de serem dominadas pelos homens. Apesar de as mulheres serem aproximadamente 50% da humanidade, eles aparecem muito mais nas coleções de literatura em línguas de sinais, nas pesquisas sobre essa literatura e nas redes sociais, onde encontramos vídeos das produções literárias. Um levantamento de algumas antologias, coleções e de alguns eventos mostra um pouco da situação atual da área da literatura em Libras, onde vemos uma desigualdade histórica entre os gêneros, mas que parece estar diminuindo atualmente no Brasil.

Sabemos que as mulheres não têm paridade de representação nas artes performáticas. Lauzen (2017) afirma que, em 2014, apenas 12% dos protagonistas nos 100 filmes mais assistidos de Hollywood eram mulheres. Uma pesquisa sobre literatura infantil escrita na língua inglesa (TAYLOR, 2018) apresenta um levantamento de quase 300 livros publicados nos últimos 100 anos e mostra que 25% deles não tem personagens femininas e apenas 14% as contemplam e, nesses casos, elas falam e têm um papel de líder. Dos outros, 38% tem personagens femininas com falas, mas com papel passivo e 23% tem personagens femininas, mas que não se pronunciam em cena.

Nas línguas de sinais, vemos uma realidade parecida. O documentário “The Heart of the Hydrogen Jukebox”, realizado por Nathan Lerner e Feigel (2009) (Nathan Lerner é mulher, Feigel é homem), descreve os pioneiros literários surdos que criaram poesias em ASL entre as décadas de 1940 e 1980. O documentário mostra a importância das pessoas que criaram e desenvolveram o gênero da literatura sinalizada. Nove artistas masculinos são apresentados: Robert Panara, Bernard Bragg, Patrick Graybill, Clayton Valli, Peter Cook, Jim Cohn, Allen Ginsberg, e o duplo “Flying Words Project” formado por Peter Cook e Kenny Lerner (homens). Apenas três artistas femininas são apresentadas: Dorothy Miles, Ella Mae Lentz e Debbie Rennie. Há uma proporção de três homens para cada mulher.

O site Culturasurda.net é uma das maiores coleções brasileiras on-line de produções em línguas de sinais, com 78 poemas. Destes, 62% são apresentados por homens e 35% por mulheres (mais 4% são apresentados pelos dois gêneros). A pesquisa de doutorado de Janaína Peixoto (2016) apresenta um corpus de poesia em Libras em que 16 dos 70 poemas foram interpretados por mulheres (23%). Na coleção de poemas que formou a base da antologia poética em BSL (língua de sinais britânica)47 feita em 2012, cinco homens têm sua própria playlist em comparação a três mulheres. Os homens também têm mais exemplos de poesia postados. Dos 100 poemas no canal, 65% foram feitos por homens e 35% por mulheres. Há uma proporção de dois poemas masculinos para cada poema de mulher.

Sutton-Spence e colegas (2017) descreveram o papel de diversos pioneiros de literatura em Libras. No artigo, vemos seis homens (Carlos Goés, Silas Queiroz, Augusto Schallenburger, Nelson Pimenta, Bruno Ramos e Sandro Pereira) e três mulheres (Marlene Prado, Kelly Piedade de Ávila e Fernanda Machado). Há uma proporção de dois homens para cada mulher.

É muito mais comum encontrar artistas surdos masculinos participando como convidados em festivais e eventos “ao vivo”. No “Festival de Folclore Sinalizado: Os craques da Libras”, em 2014, organizado na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC –, dos seis artistas convidados para darem oficinas e apresentarem um show de poemas, cinco eram homens (na Figura 12, da esquerda para a direita: Richard Carter, Sandro Pereira, Rimar Romano, Nelson Pimenta e Bruno Ramos). Fernanda Machado é a única mulher.

Cartaz do primeiro festival de folclore sinalizado

Figura 12: Cartaz do primeiro festival de folclore sinalizado - 2014

Fonte da imagem: Martin Haswell, acervo particular.

No segundo Festival Internacional de Folclore Surdo, no ano de 2016 em Florianópolis, as organizadoras se esforçaram muito para atingir uma paridade de participação entre mulheres e homens. Na Figura 13, da esquerda para a direita vemos: Atiyah Asmal (África do Sul), Rosani Suzin (Brasil), Donna Williams (Reino Unido), Susan Njeyiyana (África do Sul), Silas Queiroz (Brasil), Marlene Prado (Brasil), Carlos Alberto Goés (Brasil), Rosana Grasse (Brasil), Carolina Hessel (Brasil), Ella Mae Lentz (EUA), Peter Cook (EUA), Renata Heinzelmann (Brasil) e Johanna Mesch (Suécia), Richard Carter (Reino Unido). Isso mostra que, com um esforço, pudemos atingir uma igualdade conforme esperado.

segundo festival de folclore surdo

Figura 13: Cartaz do segundo festival de folclore surdo - 2016

Fonte da imagem: Martin Haswell, acervo particular.

Apesar de ser possível essa paridade, podemos questionar por que as mulheres não têm maior visibilidade na literatura sinalizada. Esse é um assunto que merece mais pesquisas, no entanto, podemos destacar e enaltecer a contribuição das mulheres no Brasil para a literatura em Libras, como artistas, autoras, professoras, pesquisadoras e curadoras.

21.3. Mulheres surdas autoras de textos escritos

As mulheres surdas brasileiras sempre estiveram presentes nos textos escritos de literatura surda, e têm ainda uma maior presença nas produções autobiográficas e nas literaturas infantil e juvenil.

A respeito de autobiografias escritas em português, Müller e Karnopp (2015), pesquisaram as narrativas de autoria surda. Das dez obras do levantamento, oito foram escritas por autoras surdas (restando um autor homem e uma antologia com contribuições de homens e mulheres).

A literatura infantil é frequentemente ligada a autoras, talvez por causa da relação forte entre o cuidado materno e a educação das crianças, tradicionalmente feitos por mulheres. Perry Nodelman (1988, p.32) afirma que “A literatura infantil é certamente uma atividade das mulheres. A maior parte da escrita e edição de livros infantis é feita por mulheres, a maioria dos bibliotecários infantis são mulheres e a maioria dos estudiosos da literatura infantil são mulheres” (tradução nossa).

Assim, esperamos encontrar nas pesquisas de livros infantis para surdos muitos textos escritos por mulheres e vídeos de narrativas em Libras com contadoras. Lodenir Karnopp (2008) encontrou um equilíbrio nos textos escritos por homens e mulheres juntos (por exemplo, “Cinderela Surda” e “Rapunzel Surda”). “A cigarra surda e as formigas” (OLIVEIRA; BOLDO, 2003) e “Tibi e Joca” (BISOL, 2001), ambos com público-alvo infantil, foram escritos por mulheres.

As pioneiras em tradução literária começaram as traduções de literatura para Libras no final do século XX. Hoje em dia, as traduções infantis mais conhecidas talvez sejam as das Fábulas de Esopo, recontadas por Nelson Pimenta (com Ana Regina Campello) em 1999. Porém, já em 1992, a tradutora surda Marlene Pereira do Prado traduziu uma história infantil com a pesquisadora Clélia Ramos, e as duas lançaram a tradução de “Alice no País das Maravilhas” (RAMOS, 2000). Heloise Gripp traduziu “Chapeuzinho Vermelho” para a coleção INES e, mais recentemente, Carolina Hessel, no site Mãos Aventureiras, conta muitas histórias traduzidas em Libras.

21.4. As pioneiras da literatura em línguas de sinais

A história da literatura surda mundial ainda não foi muito pesquisada (embora Mourão, 2016, descreva muito da história da literatura surda brasileira). Porém, os pioneiros da literatura surda contavam com a presença de mulheres como artistas surdas pioneiras. Apesar de, muitas vezes, as publicações literárias de épocas passadas terem sido criadas por homens, existem mulheres surdas que atuaram como precursoras no campo literário. Por exemplo, já falamos do primeiro poema conhecido em língua de sinais registrado em filme, A morte de Minnehaha. Vale destacar, que foi produzido em 1913 por uma mulher, Mary Williamson Erd, que era professora da escola de surdos Michigan School for the Deaf.

A primeira pesquisa linguística sobre poesia de origem surda em língua de sinais (por Klima e Bellugi, 1979) analisou os poemas criados em ASL por uma mulher – Dorothy Miles. Dorothy era poeta, mas também professora pioneira da literatura surda. Sabemos que, sem a divulgação das informações sobre os mecanismos de poesia, a pesquisa e a criação não podem se desenvolver. Outras mulheres, professoras, também asseguraram a implantação da literatura surda nos contextos acadêmicos. No Brasil, a professora pesquisadora Lodenir Karnopp implantou a literatura surda no primeiro curso de Letras Libras a distância da UFSC, em 2008. Ela contou um pouco sobre isso:

Lembro que sugeri em uma reunião a proposta dessa disciplina. Isso estava relacionado com a experiência que tive na ULBRA, com a publicação dos livros "Cinderela Surda", Rapunzel Surda... Inicialmente me enviaram uma disciplina intitulada Literatura Visual, mas sugeri que o nome fosse Literatura Surda - e foi aceito. ... Meu objetivo era defender que o estudo de qualquer língua deve também contemplar o estudo da literatura daquela língua. Esse foi meu argumento naquela época. Língua e Literatura! (comunicação por e-mail, 2017).

Com essa disciplina, formaram-se mais de mil professores no Brasil na área de literatura surda, e foi uma mulher que iniciou esse processo.

As pesquisadoras também são imprescindíveis para se estabelecer a literatura surda no cânone literário de um país. Heidi Rose pesquisou a literatura surda em ASL em 1992. Para dar outros exemplos, no Reino Unido as pesquisadoras Rachel Sutton-Spence e Michiko Kaneko publicaram o primeiro livro com foco inteiro na literatura surda e sinalizada (SUTTON-SPENCE; KANEKO, 2016). Na Suécia, a professora surda Johanna Mesch faz pesquisas na Universidade de Estocolmo junto a suas produções literárias, criando uma coleção de poesia em língua de sinais sueca – Swedish Sign Language SSL. No Brasil, ao lado de pesquisadores masculinos, podemos destacar as seguintes autoras (entre muitas outras): Carolina Hessel Silveira, Fernanda Machado, Janaína Peixoto, Lodenir Karnopp, Marilyn Mafra Klamt, Renata Heidermann e Ronice Müller de Quadros.

Vimos, neste livro, a importância de registrar as produções literárias em Libras, mas para a promoção da literatura é importante também organizar os materiais de uma forma acessível a fim de se promover os trabalhos dos poetas. Nesse sentido, no campo da curadoria se destaca a importância das mulheres. Já falamos do documentário realizado por Miriam Nathan Lerner, “The Heart of the Hydrogen Jukebox”; foi ela quem entrou na biblioteca do Instituto Técnico Nacional dos Surdos, em Rochester, nos EUA (em inglês “The National Technical Institute for the Deaf”), pegou caixas de vídeos em VHS e assistiu a horas dessas gravações já esquecidas para reconstruir a história da poesia em ASL e criar aquele documentário – com a ajuda da bibliotecária Joan Naturale.

As mulheres no Brasil criaram coleções, como a de Janaína Peixoto (2016), e a primeira antologia de poesia em Libras, de Fernanda Machado, em 2018. Nesse mesmo ano começou outro projeto de antologia de literatura em Libras, coordenado por Ronice Müller de Quadros. Com esses recursos, professores, alunos, pesquisadores e poetas podem aprender sobre a poesia sinalizada.

A respeito de artistas surdos brasileiros, ao lado dos pioneiros em cada fase da nossa história da literatura em Libras sempre há mulheres:

  1. Carlos Goés, Marlene Prado e Silas Queiroz
  2. Augusto Schallenburger, Kelly Piedade de Ávila, Nelson Pimenta
  3. Bruno Ramos, Fernanda Machado, Sandro Pereira

Hoje, graças a essas mulheres, outras entraram no campo da literatura em Libras.

21.5. Temas típicos e características da literatura feminina em Libras

As artistas surdas de Libras fazem literatura surda e feminina. Podemos dizer que essas duas são bastante parecidas. Vimos, no capítulo 8, que diversas pesquisas já mostraram que a literatura surda muitas vezes aborda tópicos relacionados ao mundo surdo e à experiência surda, falando de opressão, resistência e liberdade. Por outro lado, Nodelman (1988, p.33) destacou que os aspectos característicos da escrita feminina não são apenas uma resposta à repressão, “mas sim como uma visão diferente, uma maneira alternativa de descrever a realidade” (tradução nossa).

Sugerimos, então, que as narrativas e os poemas das artistas surdas podem oferecer uma alternativa para que todos os surdos – homens ou mulheres – possam ver a realidade do mundo surdo.

A literatura feminina é caracterizada por histórias em que o protagonista é feminino e a maioria dos personagens é feminina, incluindo a família e os amigos. Geralmente se concentram numa protagonista mulher que enfrenta uma situação difícil que afeta a vida das mulheres, como por exemplo: um conflito pessoal, um problema familiar, ser mãe, a vida amorosa, os problemas de amizade ou conflitos entre trabalho e vida pessoal. Dado isso, a literatura surda feminina pode oferecer uma descrição alternativa da realidade do mundo das mulheres surdas.

A subjetividade da literatura em Libras já foi comprovada e sabemos que a apresentação dessa literatura exige a incorporação dos personagens. No capítulo 7 abordamos que algumas obras focam no “eu” do poeta ou contador da história. Os estudos críticos literários destacam claramente que o “eu” do poeta não é o mesmo “eu” do autor. Assim, um autor masculino pode criar uma obra literária na voz de um “eu” feminino, e não há nada que impeça uma poeta surda de criar e apresentar um poema ou história em Libras com o “eu” do poeta homem. Mas isso não é comum, talvez por causa da visibilidade do corpo feminino da artista. Como a literatura surda está “dentro do corpo” da atriz, quando o protagonista é feminino, o corpo feminino da artista expõe diretamente a sua forma.

Nas obras das artistas surdas, vemos que a maioria das protagonistas é de mulheres, em parte devido à importância do corpo na literatura surda sinalizada (ROSE, 1992; 2006), em que o corpo feminino da artista surda incorpora personagens femininas. Quando uma narrativa inclui personagens femininas, não há necessidade de a artista indicar que o corpo mostra uma mulher, porém quando existe uma dúvida, ela pode exagerar os traços linguísticos e performáticos para identificar o ser feminino. Veremos quatro exemplos disso.

Narrativas sinalizadas por mulheres podem apresentar o eu-poético (isto é, a voz que fala no poema) explicitamente por meio do corpo feminino. No poema As Brasileiras, de Klícia Campos e Anna Luiza Maciel, as duas poetas dizem “sou” brasileira, antes de cada uma falar da outra “você é nordestina” e “você é paulistana” e finalmente “eu sou paulistana” e “eu sou nordestina”. O poema é apresentado de uma forma incorporada, onde as poetas mostram a experiência de pertencerem a regiões brasileiras diferentes. Elas nunca declaram que são mulheres, mas isso é percebido através do contexto e da apresentação.

Por outro lado, no poema dueto A Economia, de Sara Theisen Amorim e Ângela Eiko Okumura, as poetas não declararam se o “eu” é masculino ou feminino, embora os corpos das duas sugiram que possam ser personagens femininas. A incorporação do protagonista e do outro personagem é neutra para que o público não tenha a indicação sobre o gênero do “eu” apresentado. Observamos que uma tradução do dueto para o português exigirá uma decisão ao final quando se fala da demissão do protagonista (“demitido!” ou “demitida!” e “falido” ou “falida”, dependendo da escolha).

Quando o corpo da mulher mostra um ser não humano, isso não implica que ela esteja representando uma mulher. Saci, de Fernanda Machado, mostra uma onça, um papagaio e uma árvore. Fernanda incorpora os três seres não humanos, e não há sugestão de que eles sejam masculinos ou femininos. Porém, ela também incorpora o personagem do Saci, que é um homem - e nisso vemos uma terceira possibilidade, a do protagonista ser masculino e da artista ser mulher. Na performance de Fernanda, apenas nosso conhecimento de folclore brasileiro nos leva a entender que ela incorpora um personagem masculino.

Em contrapartida, na tradução do poema de cordel “Antônio Silvino o Rei dos Cangaceiros”, de Leandro Gomes de Barros, Klícia de Araújo Campos incorpora o protagonista masculino Antônio Silvino. Sendo ele um cangaceiro macho, a tradutora exagera os movimentos do corpo e a expressão facial para superar a suposição natural de que o corpo da mulher mostra um corpo feminino.

resumo

21.6. Resumo

Vimos que as mulheres surdas no Brasil são bem representadas em algumas esferas da literatura surda escrita, mas as artistas surdas ainda não participam da literatura em Libras no mesmo grau em que os homens. No entanto, elas têm sido pioneiras como professoras, pesquisadoras, tradutoras e curadoras nas áreas de literatura em Libras (e em outras línguas de sinais). O fato de o corpo ser feminino pode destacar personagens femininas na poesia, dependendo do contexto, do conteúdo e da forma da linguagem, o que não impede a artista surda de incorporar personagens masculinos.

atividade

21.7. Atividade

Assista a cinco obras artísticas em Libras criadas e apresentadas por mulheres.

  • Qual o assunto principal de cada obra? Elas têm mais a ver com a literatura surda ou com a literatura feminina (ou com ambas; ou com nenhuma)?
  • As artistas incorporam personagens humanos masculinos ou femininos, ou seres não humanos de qualquer (ou nenhum) gênero?
  • Como você sabe o gênero do protagonista?
  • As artistas incorporam os personagens masculinos? Como?
Hoje disponíveis no canal do YouTube Signmetaphor acessado em 19/03/2020