Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 1 - Alguns elementos fundamentais de literatura em libras


2. A análise da literatura em libras

objetivo

2.1. Objetivo

Neste capítulo, vamos conhecer uma parte mais prática do estudo da literatura em libras. Um dos objetivos de se pensar sobre essa literatura é simplesmente conhecê-la e apreciar a sua beleza. Mas, para pensar numa forma mais crítica sobre a literatura, cada vez que assistirmos a um vídeo, vamos fazer um tipo de análise prática. Às vezes, a análise poderá ser simples, outras vezes, talvez, façamos uma análise detalhada, mas podemos seguir os mesmos passos. Não há uma maneira “certa” de analisar a literatura em libras, porém aqui oferecemos algumas dicas que achamos úteis.

A análise ajuda a descobrir e identificar os elementos que fazem parte de um todo. Há muitas teorias sobre a “melhor” maneira de estudar e analisar a literatura. Algumas exigem que as pessoas foquem na linguagem, outras no contexto social, outras, ainda, que se observe as diversas perspectivas políticas sobre o contexto da literatura. Quando sabemos quais são os elementos que nos interessam, podemos tentar entender a relação entre eles para que possamos compreender melhor o todo. Porém, seja qual for o objetivo da análise, precisamos aprender a observar, descrever e explicar o que estamos vendo.

A observação não é fácil. Cada vez que assistimos a um vídeo de uma boa obra de literatura em libras, vemos sempre mais coisas que não tínhamos percebido antes. É importantíssimo realmente ver o texto e não simplesmente olhar ele. O que vamos descrever e explicar depende do nosso interesse. Por exemplo, se temos interesse no uso da língua, que é o foco deste livro, na estrutura das narrativas e dos poemas ou nos movimentos físicos do artista, podemos prestar atenção nisso. Normalmente, não queremos descrever tudo dentro de um texto de literatura em libras (que será até quase impossível, porque há tantas coisas para estudar), mas sim escolher algumas partes ou determinados aspectos como, por exemplo, o espaço, a expressão não manual, o uso de classificadores ou a incorporação dos personagens. Ou, se temos interesse nos temas e na representação dos personagens, procuramos elementos que possam ajudar a estudar isso.

2.2. Passo a passo para o estudo de vídeos de literatura em libras

Vamos supor que a obra literária esteja gravada e estamos estudando o texto através de um vídeo. Hoje em dia existem muitos textos literários em libras disponíveis por meio desse registro, os quais podemos estudar. É muito bom participar de eventos literários de libras ao vivo, mas não é possível estudar e analisar as obras em tempo real. Alguns pesquisadores afirmam que os estudos da literatura em línguas de sinais começaram apenas a partir do desenvolvimento do vídeo (KRENTZ, 2006; ROSE, 1992), porque antes disso não era possível. Talvez a gravação da literatura em libras tenha criado alguns elementos que não existiam antes nas versões ao vivo. Talvez seja até isso o que queremos estudar.

O primeiro passo de uma análise é assistir ao vídeo da produção do texto. Ao vê-lo pela primeira vez, simplesmente observe a apresentação. Depois, você pode refletir e anotar o que sentiu. Esse momento de reflexão inicial é muito importante. Foi interessante? O que achou interessante? Se não achou interessante, por quê? Gostou ou não? Se gostou, por quê? Se não gostou, por que não? O que você achou de “bom” na obra? Você percebeu se não entendeu algumas coisas? (talvez você pense que entendeu bem e depois vê que se enganou, mas isso não importa agora).

Assista ao vídeo novamente. Você vai começar a observar coisas que não percebeu na primeira vez – talvez elementos do conteúdo, sinais ou expressões faciais. Quando você já conhece uma história, por exemplo, sabe o que acontece no final e quem são os personagens. A partir daí você pode observar mais aspectos que contribuíram à obra10. Por exemplo, o final da narrativa poética party (em português a festa) de johanna mesch, pode deixar o espectador confuso. Quem a assistiu deve ver de novo e, já sabendo sobre o final, entender por que aconteceu assim.

Uma pessoa que é aprendiz de libras pode observar os sinais que não conhece ou o que não pegou de primeira. Não importando o nível de fluência na língua, é interessante ver algumas partes do vídeo em até 0,25% de velocidade. Isso vai possibilitar uma nova perspectiva sobre o texto.

Depois de ver o vídeo três vezes, talvez você ainda não tenha entendido tudo. Isso não é um problema, porque estamos lidando com a literatura e sabemos que há muitas razões pelas quais não compreendemos um texto literário, embora o conheçamos.

2.3. O contexto de uma obra literária em libras

É bom começar o estudo de cada poema, narrativa ou outra obra literária em libras com as seguintes perguntas:

  1. Onde e quando a obra foi apresentada?

Foi gravada num lugar com público ao vivo? Aconteceu num festival, em uma festa, manifestação ou em outro evento? Em um estúdio? Em uma sala de aula? É contada junto com outras imagens ou atividades?

  1. Quem a apresenta?

Não é apenas o nome da pessoa que importa, mas o “perfil” dela. É surda ou ouvinte (às vezes, não sabemos)? É professor/a, intérprete, aluno/a ou artista reconhecido/a? Quantos anos mais ou menos, ele/a, tem? É homem ou mulher? Talvez a raça/etnia, a religião ou a região geográfica da pessoa importe. Podemos observar muitos elementos de seu perfil, enquanto outros dados são encontrados nas informações que acompanham o vídeo ou podem, ainda, ser pesquisados em outras fontes.

  1. Por que foi apresentada?

A obra é para entreter (a quem conta ou a quem vê)? É para o ensino, tem objetivo didático? É para celebrar as conquistas de uma pessoa ou um evento? É para estudar a linguagem literária ou o conteúdo? É para dar acessibilidade aos surdos a uma obra já conhecida na sociedade brasileira dos ouvintes?

  1. Qual a origem e contexto?

É uma tradução de um texto (de um livro ou outro tipo, como um filme)? É um “reconto” de uma história (por exemplo: uma piada, fábula, lenda ou um conto de fadas)? Tem adaptações para se tornar mais agradável ao público surdo? É um texto original do autor? Vem da experiência pessoal de quem conta? É ficção ou fato?

  1. Qual é o seu público?

O texto é destinado a um público de que idade? Às crianças (de qual idade)? Jovens? Adultos? Surdos fluentes em Libras? Ouvintes que estudam Libras? Amigos do artista? Outros artistas surdos? Um público grande e desconhecido?

  1. Qual o grau e o tipo de participação do público?

É formal, por exemplo um vídeo preparado e gravado sem público? É uma performance, por exemplo do Hino Nacional ou de uma oração na igreja? Esse tipo de formalidade tem regras e convenções específicas sobre a participação dos outros? O artista conversa diretamente com o público (por exemplo, cumprimenta-o antes de começar ou explica para eles o contexto da obra)?

Cada pergunta vai nos ajudar a entender melhor a obra para fazer uma análise melhor sobre ela. Não é preciso entrar em detalhes para responder a cada pergunta (talvez não saibamos, pois a resposta não é fácil de encontrar), mas é útil pelo menos refletir um pouco sobre o seu contexto.

Podemos dividir a análise de um texto literário em três partes principais (mas interligadas). Você pode focar na parte que achar mais interessante:

  • Na performance (isto é, como a pessoa apresenta ou faz o trabalho e o contexto em que acontece)
  • No conteúdo (isto é, o que tem dentro da obra. Qual o tópico, o tema? Quem são os personagens? O que acontece? É uma metáfora?)
  • Na forma da linguagem usada (por exemplo, tem muito vocabulário ou não? Tem muitos classificadores? Usa muitas expressões faciais ou espaço simétrico?)

2.4. Sugestões para análise da forma de um texto literário em Libras

A respeito da forma, existe um sistema para a análise da literatura em qualquer língua de sinais criado pelo grupo ECHO, coordenado por Onno Crasborn, na Holanda (publicado por Nonhebel, Crasborn e van der Kooij, 2003). O grupo sugere que podemos incluir os seguintes elementos linguísticos em uma análise e para cada sinal ou trecho de sinais podemos marcar assim:

  1. A glosa do sinal

Glosa é uma tradução básica de cada sinal usando palavras em língua portuguesa (no caso do Brasil). O registro em forma escrita não precisa ser uma tradução em português e podemos, também, fazer uma transcrição em SignWriting - mas o português facilita a busca feita no computador. Usamos versalete para glosar (letras maiúsculas do tamanho de minúsculas). Assim, por exemplo, os sinais que correspondem aos referentes “pássaro” e “olhar” são grafados como pássaro e olhar. Esse recurso ajuda na análise quando se juntam elementos com um sinal que equivale ao sinal no vídeo. Podem-se anotar diversos elementos da forma pela glosa:

  • Quando há soletração (às vezes com o símbolo # na frente da glosa)
  • Apontando com o dedo indicador (às vezes marcado como “In.” ou “Ix.”)
  • Se faz um sinal com uma mão só quando deve haver duas mãos ou, ao contrário, com duas mãos quando deve haver uma mão
  • Se o sinal é um classificador, por exemplo, CL-PÁSSAROS-SE-ENTRE-OLHAM Veremos, nesse exemplo, que, onde um sinal precisa mais de uma palavra para ser traduzido, juntamos as palavras com traços ou hifens (isso é muito comum nos sinais com classificadores e incorporação)
  • Se o sinal fica parado por muito tempo
  • Se o sinal é mais um gesto (por exemplo, encolher os ombros em vez de usar o sinal não-sei)

Podemos ter uma glosa para a mão dominante (normalmente a mão direita) e uma para a mão não dominante (geralmente a mão esquerda).

  1. Repetições do sinal

O sinal pode ser repetido três ou até quatro vezes. Não precisamos escrever a glosa quatro vezes, mas apenas anotar que foi repetido quatro vezes. Por exemplo: BATA-AS-ASAS x4.

  1. Direção de movimento de locação do sinal

Marcamos isso apenas se o lugar não for esperado. A maioria dos sinais do vocabulário da Libras especifica o local do sinal, especialmente os sinais que têm contato com o corpo. Mas, às vezes, os sinais do vocabulário estão colocados em novos lugares, então devemos marcar onde foi feito o novo sinal. Normalmente, no entanto, precisamos marcar as locações dos sinais que são classificadores ou que apontam com o dedo indicador, porque os sinais que indicam lugares e os classificadores não têm um lugar específico. Os artistas de Libras irão colocar esses sinais em diversas áreas do espaço de sinalização e nossa análise pode mostrar onde estão.

Para a mão direita:

d-90 = significa que a mão está ao lado direito, a 90° do eixo central do espaço (bem no limite da extensão do braço para o lado direito do corpo)

d = significa que a mão está ao lado direito, 45° do eixo central do espaço (que é o local confortável para localizar um sinal “à direita”)

(“e-90” e “e” são iguais para o lado esquerdo)

Normalmente, o espaço neutro de sinalizar está na frente da pessoa, a uma altura média entre a cintura e o peito. Se não está lá, podemos colocar:

F=mais em frente do que o normal

P=mais perto do corpo do que o normal

C=mais acima do que o normal

B=mais abaixo do que o normal

  1. Movimento da cabeça

Podemos marcar:

Acenar, sacudir, inclinar (e quantas vezes ocorrem – por exemplo: acenar x3).

  1. Posição das sobrancelhas

Levantadas, franzidas.

  1. Abertura dos olhos

Piscando, bem abertos, franzidos, fechados.

  1. Direção de olhar

Igual à posição das mãos (por exemplo “d” ou “d-90”). Também observar as mãos.

  1. Movimentos da boca

O movimento da boca vem da língua portuguesa ou não? Segue o movimento das mãos? Mostra emoção ou ação da boca numa incorporação?

  1. Papel do ator

O ator é narrador ou personagem? Podemos anotar cada papel e cada mudança de papel.

  1. Observações e anotações
  1. Tradução

Além desses aspectos, podemos marcar simetria, velocidade, contato entre as mãos, pausas, rimas, o que quisermos. Porém, é importante lembrarmos que vale a pena anotar em detalhes apenas os elementos que vamos usar na nossa análise. Se tivermos interesse pelo uso da boca, não precisa fazer descrição detalhada do uso de espaço, mas, se tivermos interesse nos sinais classificadores ou no uso do espaço, também, poderemos anotar ambos, os olhos e a boca.

No passo a passo para preparar uma análise, conforme Nonhebel, Crasborn e van der Kooij, sugerimos o uso do software ELAN, que permite uma análise escrita junto ao vídeo da história ou do poema. Não é nossa intenção descrever como funciona o ELAN, mas quem tiver interesse em usá-lo para fazer uma análise do texto literário pode encontrar mais informações no site do ELAN aqui e no Manual de Transcrição do Corpus de Libras.

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2.5. Resumo

Nesse capítulo, fizemos uma introdução aos passos para análise de literatura em Libras. Embora os objetivos de cada análise sejam diferentes, seguimos sempre os passos de observar, descrever e explicar. Independentemente de o nosso interesse estar mais centrado no conteúdo das obras, na estrutura delas ou na linguagem produzida, é recomendado considerar o contexto sociocultural da produção antes de começar a fazer a análise. As dicas do grupo holandês ECHO ajudam a quem quiser analisar os traços linguísticos das produções literárias, como faremos na maior parte deste livro.

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2.6. Atividade

Escolha um trecho de uma obra de literatura em Libras (por exemplo: Como Veio Alimentação, de Fernanda Machado, ou outra que você quiser). Siga os passos sugeridos por Nonhebel, Crasborn e van der Kooij para fazer a análise dos sinais.

  • Os passos ajudaram você a realmente observar a obra?
  • Quais as dificuldades que você enfrentou?
  • Você pensou como esses passos podem ajudar você na sua análise de uma obra de literatura em Libras?
Uma vez assisti a uma narrativa que contava sobre o cachorro do narrador. Quase no final, o cachorro deu luz a seis filhotes. Era fêmea! Precisei ver a história mais de uma vez para entender tudo de uma nova maneira sabendo desse fato fundamental.