Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 1 - Alguns elementos fundamentais de literatura em libras


6. Literatura surda brasileira

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6.1. Objetivo

Neste capítulo, vamos pensar sobre a criação e a apresentação da literatura em Libras, com foco na ideia de literatura surda. Lembramos, do capítulo 03, que a literatura surda coloca o foco no conteúdo, nos autores e no público. Perguntamos: quem conta a literatura em Libras e para quem conta? Onde encontramos essa literatura?

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Como preparação para ler este capítulo, você pode assistir aos seguintes vídeos:

6.2. Literatura oral ou a "tradição face a face"

Costumamos dizer que uma língua que não tem um modo escrito é uma língua “oral”. A maioria das línguas no mundo não usa sistemas escritos no dia a dia e são línguas orais. Muitos falantes de línguas minoritárias sabem falar uma língua oral, mas também falam e são letrados numa outra língua, que é muitas vezes uma língua de origem europeia, em função da história da colonização dos continentes pelos europeus. A Libras é, dessa forma, uma língua "oral", porque sua cultura se baseia nos sinais “face a face”, de modo presencial, com interação, além de ter sua tradição literária ativa através do folclore e de espetáculos. Porém, vale destacar, que há uma conexão entre o “oral” e o “alfabetizado”. Muitos surdos são alfabetizados na língua da sociedade dominante (que no Brasil geralmente é o português) e interagem diariamente com os ouvintes. Nesse sentido, o narrador e pesquisador surdo de literatura surda nos EUA, Ben Bahan (2006), usa o termo "tradição face a face" quando fala da apresentação e da divulgação da literatura surda, ao invés de “tradição oral”.

6.3. Quem conta as histórias?

A questão “quem pode contar histórias em língua de sinais?” é uma polêmica. De fato, todos podem contar histórias, essa é uma necessidade vital para todos. Sem sinalizar, os surdos ficam privados desse direito humano. Conforme Stephen Ryan, contador de histórias e pesquisador surdo americano, “a contação de histórias em ASL [...] fornece uma estrutura para a perspectiva das pessoas surdas: sem ar, nossas células morrem; sem contar histórias em ASL, nossos eus (surdos) morrem” (1993, p. 145, tradução nossa).

Os principais contadores de histórias em Libras são pessoas surdas. Elas têm a língua, a cultura e as habilidades para produzir formas de arte e querem compartilhar suas experiências com outros membros da comunidade. Algumas pessoas ouvintes com pais ou irmãos surdos que dominam bem a Libras14 contam histórias em Libras porque participam da comunidade surda, apesar de não serem surdos. Aprendizes ouvintes podem aprender técnicas de contação de histórias ao contá-las, o que vai ajudar nos seus estudos de elementos específicos da língua. No entanto, em sua maioria, os principais contadores são surdos. Susan Rutherford, uma pesquisadora americana de folclore surdo, descobriu nos anos 1980 que as pessoas surdas geralmente acham que apenas os surdos devem contar as histórias tradicionais da ASL (RUTHERFORD, 1993).

Ben Bahan (2006) criou o termo “Smooth signers”, ou seja, “sinalizantes suaves”. Essas pessoas são artistas da língua e sua comunidade reconhece que eles podem explicar ideias complicadas de uma maneira bonita e que pareça simples. Elas têm as habilidades, o jeito, a capacidade ou o dom de narrar. Talvez tenham nascido com um dom, mas também devem treinar para desenvolvê-lo. Nesse sentido, Reilly e Reilly (2005) usam o termo “sinalizantes mestres” (em inglês “master signers”). Devemos lembrar que os “mestres” são homens e mulheres, mas no Brasil (e em muitas outras comunidades surdas mundiais) vemos que quem faz as performances públicas em frente a grupos, atualmente, são, na maioria das vezes, homens. Nas escolas, as mulheres (como professoras) contam as histórias, mas ainda falta uma presença notável delas nos palcos e nas redes sociais (ver capítulo 21).

6.4. Como se aprende a contar?

Ninguém nasceu sabendo como contar histórias e o processo de aprender essa arte é importante para a continuação da literatura surda. Os filhos de pais surdos muitas vezes aprendem com os pais e com outros parentes ou amigos dos pais. Por terem nascido dentro da comunidade surda, essas pessoas têm mais acesso às tradições literárias da comunidade. No entanto, os filhos de pais ouvintes aprendem de outras maneiras. Eles assistem aos adultos ou às crianças mais velhas, que são “sinalizantes suaves”, e interagem com os “mestres”. Muitos deles estudam vídeos na internet, contam as histórias para os outros e acrescentam o seu próprio estilo. Mesmo as histórias tradicionais têm a sua “marca” quando recontadas em Libras.

6.5. O público e os elementos importantes para se contar histórias ao público

Quem conta uma história trabalha junto com o público para criar uma experiência artística de literatura compartilhada. A influência do público sobre o artista e sobre o texto varia. Tradicionalmente, o público da literatura surda costumava ser apenas a comunidade surda. Os surdos nas escolas e nas associações contavam histórias para os amigos e as pessoas procuravam os que tinham o dom de narrar. Os espectadores podem determinar a escolha da história ou a sua forma. Se um grupo pedir ao surdo para que conte histórias, pode também solicitar o tipo dela e até qual história dentre as várias que já viram antes e que querem rever.

O público, hoje, contém mais ouvintes porque mais ouvintes sabem Libras e existem mais opções e espaços para eles acessarem a literatura (KRENTZ, 2006). Isso decorre especialmente dos vídeos na internet e das redes sociais; também é uma consequência dos eventos públicos de performance literária como shows, espetáculos e festivais. Bahan (2006) questionou se o artista surdo com um público de pessoas ouvintes vai mudar seu jeito de sinalizar ou as histórias que escolhe. Por exemplo, contar as histórias dos ouvintes que fazem coisas bobas ou que oprimem os surdos constituíam uma parte da tradição da literatura em ASL que os surdos contavam entre si (BAHAN, 2006)? Krentz (2006) sugeriu que o desejo de vender vídeos para os ouvintes no final do século XX e no início do século XXI poderia influenciar a forma das narrativas para agradar os ouvintes e assim diminuiria a contação das histórias que zombam dessas pessoas. Porém, parece que isso não aconteceu, os ouvintes que querem se aliar à comunidade surda assistem às mesmas narrativas e aos mesmos teatros que os surdos.

Atualmente, há mais material em vídeo no YouTube e nas redes sociais gratuitas e o público influencia menos nas histórias porque falta uma interação dinâmica. O artista simplesmente grava o que ele acha que o público vai gostar e lança na internet.

Sem um público, não vale a pena apresentar literatura surda. Entretanto, este não é “um” público homogêneo; os artistas surdos têm um público muito variável – sendo composto de surdos com diversas experiências, ouvintes ou uma mistura de ambos. Os artistas sabem como entreter e apresentar as obras que irão agradar e encantar a comunidade surda. Muitas vezes, eles mudam as apresentações de acordo com o tipo de público e por isso eles escolhem:

  1. Os elementos da língua (sinais, elementos não manuais e forma gramatical), mais adequados para um público específico – por exemplo, poucas pessoas ou uma sala grande; bons amigos ou pessoas desconhecidas;
  2. A maneira de contar a história (ritmo, velocidade, elementos não manuais) para gerar as emoções desejadas (muitas vezes risos, mas também suspense, respeito, indignação ou um sentimento de pertencer no grupo);
  3. O tema ou assunto do conto, da piada ou do poema para atender às expectativas do público;
  4. O conteúdo de acordo com o público, considerando se este reage da maneira esperada (por exemplo, se o público surdo não entende o artista ou se os intérpretes não conseguem passar para português o que é necessário).

Em todos esses pontos, vimos a importância do público. Com certeza, qualquer artista deve agradar ao seu até certo ponto, mas, na relação entre o artista surdo que apresenta seu trabalho ao vivo e um público surdo, é preciso pensar mais sobre os aspectos que não sejam tão importantes nos textos escritos.

As dicas a seguir vêm de Stephen Ryan (RYAN, 1993), sobre uma boa relação entre o contador e o público. Mostram a importância da afinidade entre os dois na comunidade surda.

6.5.1. Usar contato visual e cumprimentar o público

Essa primeira dica de Ryan é para quando as narrativas são apresentadas ao público ao vivo. Este deve se sentir como parte do evento e, por isso, o contador deve criar um bom contato com os espectadores. Ainda hoje, vemos muitas performances de narrativas e teatro ao vivo, mas com as mudanças tecnológicas das últimas décadas há muito mais narrativas gravadas em vídeo sem um público presente.

Mesmo num vídeo que não conte com a presença de espectadores, é importante prender a atenção do público desde o início. Uma maneira de chamar atenção à narrativa é saudar o público diretamente. Na história Fazenda: Vaca, de Rimar Segala, por exemplo, o artista começa com “olá, tudo bem?” e oferece uma introdução, dando o contexto da história. Rodrigo Custódio da Silva, ao contar Eu x Rato, começa com uma saudação ao público e explica que vai contar uma história que aconteceu de verdade. Sandro Pereira, em seu papel de narrador da narrativa A Pedra Rolante, gravada em vídeo, finge uma interação com um público imaginário. Ele começa mexendo com as unhas e se volta para a câmera como se tivesse acabado de notar a presença de seus espectadores, pedindo desculpas por não tê-los visto. Ele prepara as suas unhas, sobrancelhas e os cabelos e sinaliza “tudo bem?”, seguido por “vou começar”. Explica o tópico da história e a introdução termina com uma fala direta ao público: “você verá quando eu começar a contar agora”. Alguns vídeos destinados ao público infantil também começam com saudação para prender a atenção das crianças.

Mas talvez a tradição de saudar o público esteja mudando, porque muitas narrativas em vídeos gravados para distribuição nas redes sociais ou no YouTube começam sem cumprimentos ao público.

6.5.2. Considerar a idade e o interesse do público

Primeiro, o artista deve escolher os itens que ele espera que o público goste. Muitos surdos, de todas as idades, gostam de histórias que se relacionam comCidade Nova Heliópolis, São Paulo - SPlíngua de sinais que não tenha personagens surdos.

O nível de Libras usado precisa ser apropriado ao público. Por exemplo, se os seus integrantes são de uma comunidade surda rural que tem pouco contato com a Libras mais avançada e não conhecem a literatura surda, as escolhas serão diferentes daquelas feitas no caso de um público urbano com uma grande comunidade fluente em Libras onde se tem muito acesso à Libras literária.

6.5.3. Criar fortes imagens visuais

Já vimos que o objetivo principal de muitas histórias literárias em Libras é criar imagens visuais fortes. Em alguns casos, é suficiente que os fatos sejam contados em Libras para que o conteúdo fique claro. No entanto, em muitos textos literários de Libras, o público surdo acha mais divertidas as imagens fortes criadas por incorporação, classificadores e expressões não manuais exageradas.

6.5.4. Usar gestos com sinais, mas variar gestos com sinais

A dica de Ryan de misturar gestos com sinais significa que uma história contada apenas com vocabulário é de iconicidade reduzida e a sua intenção não é ilustrativa. A incorporação e os classificadores tornam as narrativas em Libras mais divertidas, porque são estruturas altamente icônicas (ver capítulo 04) e criam imagens visuais mais fortes. Usar técnicas mais teatrais, no entanto, vai além da Libras, porque não utilizam convenções linguísticas específicas, mas se baseiam em “gestos”. Ryan sugeriu usar esses gestos fortes como parte da narrativa, mas também que os bons contadores de histórias (os “mestres” ou artistas) deveriam usar uma mistura de ambos. Veremos nos capítulos 07 e 10 que um gênero específico de narrativa, o “Vernáculo Visual”, usa apenas gestos da técnica teatral, mas a maioria das histórias em Libras mistura os dois.

6.5.5. Usar pausas para permitir “cair a ficha”

O ritmo de uma narrativa precisa de preparação e planejamento cuidadoso. Contar uma história com muita pressa deixa o público sem tempo para apreciar e saborear as piadas, os sinais estéticos e criativos ou as reviravoltas. O ritmo de apresentação é importante e depende da idade e das habilidades linguísticas do público, bem como do tipo de história. É bom que o artista faça uma pausa em momentos específicos e verifique se o público captou a história e entendeu o que acabou de ser apresentado ou contado. Se a história é engraçada ou assustadora ou se pretende gerar qualquer outra emoção forte, o narrador deve dar tempo para a emoção se acumular no público. Nos vídeos de Libras literária na internet, que permitem múltiplas visualizações, alguns aspectos do ritmo são menos importantes, porque se os espectadores não entenderam a obra, podem simplesmente assisti-la novamente. No entanto, para criar um efeito estético e aproveitar o ritmo da performance, as pausas são essenciais.

6.5.6. Celebrar o patrimônio surdo

Em toda boa literatura surda, o contador celebrará o patrimônio surdo, seja por conteúdo da história relativa aos surdos, seja pela forma da Libras que celebra a língua de sinais como a parte mais valorizada da herança surda. O narrador deve ser entusiasta ao contar a história, reunindo o público para celebrar as coisas boas da vida dos surdos através da literatura em Libras.

6.6. Onde os surdos aprendem a literatura sinalizada?

Tradicionalmente, os artistas de Libras aprendem a arte de contar narrativas nas escolas de surdos. As crianças passam histórias adiante entre si e os sinalizantes transmitem suas habilidades aos mais novos na escola. Nas bilíngues, hoje, podemos esperar que os professores, e não mais apenas os estudantes, ensinem às crianças como contar histórias. No entanto, a política de integração na educação cria a falta de grupos de pares surdos que possam interagir e aprender. Além disso, a maioria deles estuda apenas a literatura em português, às vezes traduzida para uma forma de Libras (por exemplo, os contos de Machado de Assis em Libras) que mostra o conteúdo da história. Dar acesso a essas narrativas clássicas é muito importante para os alunos surdos (SPOONER, 2016), mas não gera as mesmas emoções neles como gera nos alunos que têm o português como primeira língua.

Alunos surdos (e ouvintes) ainda podem aprender as narrativas em Libras através de coleções gravadas e disponíveis na internet ou por outros meios de divulgação. Mas simplesmente assistir a uma história não é suficiente para aprender a riqueza da literatura surda, pois isso não ensina explicitamente sobre como criá-la e como se expressar. Além disso, é importante para os surdos aprender a literatura surda em Libras em eventos culturais como os que acontecem, por exemplo, nas associações.

Muitas pessoas, hoje em dia, aprendem narrativas e piadas, poemas e peças de teatro por meio da internet, especialmente pelas redes sociais, uma oportunidade imensa para a divulgação da literatura em Libras. Por outro lado, ficar em casa assistindo à literatura numa tela não é igual a participar de um evento literário presencial, onde os surdos se encontram para compartilhar a cultura surda na íntegra - e não apenas uma parte da literatura. Tirar a literatura em Libras da comunidade surda é como cortar flores para um buquê: por uns dias elas permanecerão lindas, mas vão murchar e morrer em pouco tempo por falta das suas raízes.

resumo

6.7. Resumo

Nesse capítulo, vimos que a Literatura em Libras é fortemente ligada à cultura surda e à comunidade surda brasileiras. As questões de “quem” e “onde (se)” produz literatura em Libras estão relacionadas ao contexto social e cultural da literatura nessa língua. Em grande parte deste livro focaremos na produção de artistas e no uso linguístico dos seus produtos, mas, especificamente, esse capítulo enfatizou o papel crucial do público - o qual temos que ter sempre em mente.

atividade

6.8. Atividade

  1. Escolha duas histórias ou dois poemas que você considera que sejam destinados a diferentes públicos (por exemplo, um para as crianças mais jovens e outro para alunos de Libras ouvintes ou destinado a adultos surdos fluentes em Libras) e pense sobre:

    • Quem é o público? (Lembramos que pode haver uma variedade de públicos). Por que você acha isso?
    • Como é que o texto indica que o público-alvo é a comunidade de surdos? (Será que eles sinalizam isso?)
    • Quem está contando a história?
    • Onde a história está sendo contada?
    • Por que a história está sendo contada?
  2. Escolha uma história em Libras e identifique quem é o público-alvo. Pense num público diferente. Como você mudaria a história se fosse destinada a esse outro público? Por quê?
Denominados CODAs (Children of Deaf Adults – que significa os “filhos de pais surdos”) ou SODAs (Siblings of Deaf Adults – que significa os irmãos de surdos).