Literatura em Libras

de Rachel Sutton-Spence

Parte 3 - Elementos de linguagem estética


16. Metáfora

objetivo

16.1. Objetivo

No capítulo anterior, começamos a falar sobre a metáfora. Neste, conheceremos alguns outros aspectos das metáforas e da linguagem metafórica e figurativa que vemos na literatura surda, especialmente na literatura em Libras. Vamos descrever as funções das metáforas e os seus sentidos, especialmente no contexto da literatura em Libras. Veremos a importância da modalidade visual da Libras em metáforas conceituais e em metáforas linguísticas. Pensaremos também como a iconicidade e a incorporação afetam a linguagem figurativa da Libras.

lista de vídeos

Como preparação para este capítulo, você pode assistir aos seguintes vídeos:

16.2. O que é metáfora?

Existem muitas definições de metáfora, mas, em resumo, podemos dizer que na metáfora a essência é entender e experimentar um tipo de coisa em outros termos. Assim, a coisa apresentada não é o seu significado. A pessoa fala algo, mas tem a intenção de que a outra pessoa entenda o que foi dito de outra maneira. Por isso, o sinal metáfora em Libras é baseado na ideia de se mostrar claramente uma coisa, mas também de que há outra ideia importante por trás que devemos entender.

Geralmente, na metáfora, usamos termos concretos para significar um conceito mais abstrato. Apresentamos o concreto – o real ou o físico – para significar o abstrato – o que não é físico. Por exemplo, quando usamos a frase em português “fiquei com o cabelo em pé” queremos dizer que levamos um susto e usamos um sinal relacionado a essa expressão em Libras para expressar a mesma ideia. Um susto é um conceito abstrato que não podemos ver, mas os cabelos são concretos, são coisas reais que podemos ver e tocar. Nossos cabelos podem ficar em pé por muitas razões (por causa do vento, porque tiramos o boné com pressa ou porque os cabelos estão despenteados) e não apenas por susto. Por outro lado, quando nos assustamos, isso pode ter muitas causas e muitos efeitos físicos e mentais, além dos cabelos se mexerem. A expressão “ficar com o cabelo em pé” supõe uma razão para que os cabelos fiquem assim e usa um traço da experiência do susto para criar a metáfora. É importante, também, lembrar que os cabelos não estavam realmente em pé, mas quando levamos o susto é como se estivessem.

A metáfora é um elemento importante nas literaturas de diversos tipos e em diversas culturas. Muitos poetas usam uma imagem concreta para descrever uma ideia abstrata, e a seleção da imagem certa para relacionar à ideia de uma forma original e criativa é muito valorizada. Alguns textos inteiros são metafóricos, ou ainda, dentro deles veremos diversas metáforas menores. Ressaltamos, no entanto, que nem toda a literatura é metafórica. No Japão, por exemplo, os poemas tradicionais haicais não usam metáfora. O objetivo é criar uma imagem mental forte por meio das palavras, mas elas não têm intenção de indicar outro significado. Em Libras, muitos poemas não têm significados escondidos porque os poetas apresentam diretamente o que eles querem dizer e a criatividade está dentro da forma dos sinais e não no conteúdo. Mas, em outros textos literários em Libras, vemos metáforas, como veremos a seguir neste capítulo.

16.3. Exemplos de metáfora em Libras

Sandra Patrícia de Faria do Nascimento (2009), pesquisou sobre as metáforas no léxico da Libras. Ela percebeu que muitas frases metafóricas em português que usam o corpo têm empréstimos equivalentes em Libras e que elas são apresentadas iconicamente usando o corpo. Já vimos isso no exemplo dos cabelos em pé. Na expressão em português “falar pelos cotovelos” (com sentido de falar sem parar) podemos articular o sinal falar no cotovelo. A outra pessoa precisa entender que os cotovelos não falam, mas que a pessoa fala demais. Sinalizar “segurando uma vela” pode significar que alguém realmente está segurando uma vela, mas o sentido metafórico é o de uma pessoa solteira que está na presença de namorados e se sente como se estivesse sobrando. Podemos criar alguns sinais de uma forma mais visual juntando duas partes de um sinal. No sinal pau ou madeira, o punho bate o antebraço. No sinal metafórico cara-de-pau, o punho bate na cara. Sem saber que o punho faz parte do sinal pau, a outra pessoa não entende. Além do mais, pode-se pensar que o rosto é feito de pau. O significado certo será entendido apenas quando se souber que, em português, um “cara de pau” é uma pessoa sem vergonha41. Esses processos de criação de metáforas em Libras são criativos, os quais observamos na literatura em Libras quando os poetas brincam com os sinais.

16.4. Metonímia e sinédoque

Relacionadas ao conceito de metáfora, também temos as ideias de metonímia e sinédoque. Nas duas, também existe a concepção de que aquilo que a pessoa fala não é o que ela realmente quer dizer.

Metonímia é a utilização de uma palavra ligada a algum outro sentido para expressar uma ideia. Por exemplo, no mês de abril temos o feriado de Tiradentes, o revolucionário que foi condenado à morte por enforcamento. O sinal para a pessoa, Tiradentes, para o feriado de Tiradentes e até para o mês de abril é baseado na imagem do enforcamento, que é ligada aos conceitos. Na Inglaterra, os guardas da rainha usam uniformes com chapéu de pelo de urso com uma correia do queixo. Essa correia é uma imagem ligada à Inglaterra e em Libras se tonou o sinal que significa o país inteiro. Libras tem muitos sinais metonímicos para conceitos abstratos, tais como meses, países, cidades, estados, feriados e estações do ano.

Sinédoque é uma figura que consiste no uso do “todo pela parte” ou da “parte pelo todo”. Por exemplo, em Libras usamos a imagem de um chifre para falar de uma vaca. O chifre, na realidade, é apenas uma parte da vaca, mas a sua figura substitui a vaca inteira. O vocabulário da Libras usa muito a sinédoque para conceitos concretos. Muitos sinais para animais, frutas e objetos cotidianos são baseados nessa figura.

Ambas, metonímia e sinédoque, são usadas na literatura em Libras e na criação de sinais novos, e mostram imagens visuais para o público entender que há diversos níveis de sentido.

16.5. A metáfora literária em Libras

A metáfora na literatura em Libras ocorre em vários níveis. Quando um texto inteiro é uma metáfora, é chamado de alegoria ou metáfora estendida. O público decide qual é a metáfora do poema, mas essa não é uma decisão livre. Sempre deve ser justificada com base no nosso entendimento da metáfora convencional, nosso conhecimento e na nossa experiência de mundo e em qualquer mapeamento icônico entre forma e significado (LAKOFF; TURNER, 1989, p. 146).

Nesta seção, investigamos exemplos de literatura em Libras em que o texto inteiro, um trecho maior de um sinal ou de uma frase, carrega uma metáfora. Isso quer dizer que vemos uma narrativa apresentada sobre um assunto que na verdade tem a intenção de mostrar outro significado.

16.5.1. A metáfora nas narrativas traduzidas

As fábulas e as parábolas das sociedades ouvintes usam um tipo de metáfora: apresentam uma imagem, mas escondem uma moral ou um objetivo que o público deve entender. Algumas dessas fábulas foram traduzidas para Libras por Nelson Pimenta.

As fábulas são contos sobre um assunto concreto, mas que têm o objetivo de mostrar outro significado mais abstrato. A fábula A Lebre e a Tartaruga fala de uma corrida entre dois animais, uma lebre (por natureza muito rápida) e uma tartaruga (por natureza muito devagar), que ao final tem um resultado inesperado. Na fábula O Sapo e o Boi, um sapinho cheio de inveja de um boi imponente tenta ficar inchado até ficar do tamanho do boi. Apesar de os amigos pedirem para que ele desista, continua inchando até estourar. Nos dois contos, há muitas coisas fictícias, aplicando-se diversas figuras antropomórficas aos animais (ver capítulo 17). Mas, apesar de irreais, essas são histórias concretas com animais que podemos ver e que fazem ações reais. Nelson Pimenta conta essas fábulas com muitas figuras estéticas, seguindo as regras de criação de histórias visuais em Libras e, por isso, são contos que podemos valorizar como arte literária e divertida. No entanto, essas histórias têm um sentido metafórico também.

Normalmente, o contador de uma fábula termina com o significado da história, que revela a metáfora. A moral trazida ao final de A Lebre e a Tartaruga explica, por exemplo, que uma pessoa com menor habilidade natural, mas persistente (a tartaruga), pode vencer uma pessoa com mais habilidade, mas menos aplicação e afinco (a lebre). A moral da história, no final de O Sapo e o Boi, ensina que é melhor se aceitar como se é e não tentar ser o que não se pode ser (um sapo nunca pode atingir o tamanho de um boi).

Nas parábolas, como nas fábulas, o sentido não é aparente e os personagens são simbólicos, embora eles sejam humanos e não animais. A história Fazenda: Vaca, contada por Rimar Segala, é uma parábola. Nela, assim como em muitas outras, o assunto da narrativa é concreto, mas a ideia contada é mais abstrata. Nas parábolas, normalmente, o contador também explica os significados. Por exemplo, na bíblia, onde são escritas as parábolas de Jesus, depois de contar as histórias ele explica o que elas significam para os discípulos.

Em Fazenda: Vaca, um mestre e um discípulo seguem por uma estrada com fome. Uma família pobre, com apenas uma vaca, os recebe e dá leite e queijo para eles com toda a sua generosidade, apesar de serem muito pobres. O pai da família explica que graças a sua vaca continuam pobres, mas têm as necessidades mais básicas supridas. O mestre manda seu discípulo empurrar a vaca de um precipício e matá-la. Muitos anos depois, o discípulo se arrepende de matar o único apoio que a família tinha e resolve voltar para pedir desculpas. Lá ele encontra uma fazenda rica e a família confortável com toda a comida que quisesse ter. O pai explica que, um dia, a única vaca morreu por acidente e a família teve que que se esforçar para sobreviver. Tentaram novos negócios, até que criaram uma fazenda produtiva - o que nunca teria acontecido se a vaca continuasse a fornecer somente o básico.

No final dessa parábola, Sueli Ramalho explica que a história mostra para o surdo que não é bom sempre se fazer a mesma coisa de maneira limitada, mas que se deve abrir a mente, se arriscar a fazer novas coisas, se desenvolver e tentar ter mais sucesso.

16.5.2. Narrativas surdas originais

As metáforas acontecem também nas narrativas originais dos surdos. Nelas, o narrador não explica o significado da metáfora, mas deixa para público a tarefa de entendê-la. Às vezes a metáfora é fácil de entender, como veremos na narrativa O passarinho diferente, contada por Nelson Pimenta

A história é baseada numa versão em ASL do artista e pesquisador surdo Ben Bahan. Nelson fez a sua tradução para Libras com adaptação à cultura brasileira. O passarinho nasce dentro de uma família de águias, mas com o bico pequeno e reto. A família percebe que ele é diferente e tenta achar uma cura para que ele se torne uma águia com o bico grande e curvado, ou, pelo menos, que ele aprenda a viver como elas, caçando coelhos e voando alto. O passarinho vai a uma escola especial para pássaros com bicos defeituosos como o dele para tentar remediar o problema. Conhece um grupo de passarinhos como ele, vivendo de outra maneira, comendo uvas e cantando; fica muito contente com eles, mas acaba voltando para a sua família. Ele aceita então uma cirurgia para que seu bico fique curvado e parecido com o de uma águia, mas fica zangado porque parece mais um papagaio. Ele volta aos amigos passarinhos, mas com a nova forma de seu bico ele não consegue mais comer uvas nem cantar. No final, ele voa sozinho até o pôr do sol no horizonte.

A narrativa fala das aves, mas entendemos que é uma metáfora da sociedade humana. Para os surdos, fica claro que a narrativa é uma metáfora para a experiência dos surdos numa sociedade de ouvintes. O passarinho é o filho surdo e a família de águias (que ama muito o seu filho) é a família ouvinte. As tentativas de curar o bico têm paralelo com as tentativas de curar a surdez, e a escola para remediar o passarinho tem professores, objetivos e falhas bem conhecidos pela comunidade surda em sua educação. Os passarinhos que cantam e comem uvas são uma metáfora para a comunidade surda, vivendo do jeito natural deles. A cirurgia para curvatura do bico remete à cirurgia do implante coclear e o resultado de criar um bicho nem de águia nem de passarinho é o surdo que não se encaixa nem no mundo dos surdos tampouco no dos ouvintes.

Mas nem todas as metáforas são tão fáceis de entender. A pesquisadora surda norte-americana Phyllis Wilcox explica que públicos diferentes podem ter opiniões distintas sobre o significado de uma metáfora literária. Sua pesquisa mostrou o poema Two Dogs (Dois cachorros) da poeta Ella Mae Lentz em ASL para surdos de três países. No poema, dois cachorros estão amarrados por uma corrente. Um deles é de raça pura e outro um vira-lata. Os dois se odeiam, mas não podem fugir, então decidem aceitar suas diferenças e morar juntos. O poema é uma metáfora – mas o que significa? Quem são os cachorros? O que significa a corrente? Os surdos norte-americanos acharam que os cachorros significam os surdos que usam ASL e os surdos oralizados, ambos ligados pela vida cotidiana da comunidade surda. Os surdos na Suíça pensaram que o poema falava dos ouvintes e dos surdos, ambos ligados pela humanidade. Já os italianos entenderam que o poema falava dos nativos de um país e dos imigrantes recém chegados, ligados pela mesma cidadania. Na verdade, qualquer interpretação é válida.

Agora veremos o exemplo de um texto em Libras em que sabemos que existe uma metáfora, mas não fica claro o que ela significa. Já assistimos ao poema narrativo Bolinha de Ping-pong, de Rimar Segala. Nesse texto, há uma competição de pingue-pongue entre duas pessoas muito diferentes - um homem forte e mais grosseiro e uma mulher mais refinada e aparentemente delicada. No desenvolvimento da história, vemos que a bolinha sofre no jogo e pede para o juiz ajudá-la. No final da competição, depois de lutar e de bater a bolinha de cá para lá, nenhum dos participantes a quer mais. Então o narrador pergunta: “E aí?”.

Essa é uma narrativa com um assunto concreto, em que as pessoas interagem com um objeto, mas tem um sentido abstrato e conceitual que não é tão fácil de mostrar visualmente. No início da história, Rimar explica que se trata de uma metáfora, mas cada pessoa precisa decidir qual é o significado que está por trás das imagens apresentadas. Os públicos entendem que a metáfora mostra uma pessoa com pouco poder que se sente pressionada por duas demandas mais poderosas que estão em conflito. Algumas pessoas acham que a bolinha é surda e os dois competidores são a sociedade ouvinte e a comunidade surda. Outras pessoas dizem que são os sistemas de educação oral/inclusivo e bilíngue, ou que a bola é um filho surdo e que a mãe e o pai lutam para controlar a vida dele. Outra interpretação é a de que a bolinha pode ser qualquer pessoa (surda ou ouvinte) que sinta a pressão de duas demandas opostas, por exemplo estudar ou trabalhar, ou obedecer às regras da sociedade ou seguir outro estilo de vida.

O prazer da metáfora literária está em se pensar no que ela significa, além de apreciar as imagens concretas apresentadas para tentar entender um significado abstrato.

Talvez o público nem perceba que um texto é uma metáfora. Veremos isso no poema em BSL Doll (em português, A Boneca) do poeta britânico Paul Scott. Embora seja destinado para um público britânico de BSL, o poema usa apenas classificadores e incorporação42, então é facilmente entendido por usuários de Libras. Fala de uma criança que arruma os cabelos da boneca, coloca uma maquiagem nela e ao final arranca a sua cabeça. Muitas pessoas acham o poema um conto curtinho e engraçado que fala do jeito das crianças de destruírem seus brinquedos. Superficialmente, parece isso mesmo. Ainda assim, é um poema rico pelo uso de uma linguagem poética. Porém, Paul Scott explicou que essa é uma metáfora séria e pesada, que mostra a crueldade da sociedade ouvinte que tenta transformar os surdos e os oprime ao querer que sejam ouvintes contra suas vontades, até que aceitam a sua destruição total. Quem percebe isso não ri mais, mas ao assistir a um poema que parece tão inocente sendo tão cruel, emoções fortes são instigadas.

O poema Homenagem Santa Maria/RS, de Alan Henry Godinho, mostra metáforas de outro tipo. É um lamento em homenagem aos jovens da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que morreram em um trágico incêndio em uma festa de formatura em 2013. Nesse poema, o artista fala dos jovens como se fossem muitas flores ou estrelas. Sobre as flores, sabemos que são lindas, mas que vivem pouco tempo. Compara as flores com a vida dos jovens. Depois, fala deles como se fossem estrelas. As estrelas também são lindas, mas elas duram muito tempo. Então compara as estrelas com a memória dos jovens. Sabemos que eles não são flores nem estrelas, tampouco pássaros que voam para o céu (o que o poeta também menciona), mas as ideias dentro do poema são metáforas concretas (flores, estrelas, pássaros) que mostram conceitos abstratos (vida, memória e paz).

O poema Lutas surdas, também de Alan Henry Godinho, descreve de forma poética o movimento de luta dos surdos contra o fechamento do Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES. O poema tem muitas metáforas visuais. Ao falar da marcha de protesto dos surdos em Brasília, mostra visualmente a estrutura do Congresso Nacional tremendo com as vibrações da manifestação. Os prédios não tremeram de verdade, mas o poema os mostra de uma forma criativa, como se tremessem. Alan Henry não usou o sinal tremer, mas adicionou um movimento de tremer dentro dos sinais classificadores que mostram as edificações. Os prédios de Brasília são uma figura metonímica para significar o governo. Um prédio não pode respeitar a Libras, mas as pessoas poderosas dentro deles podem. Em outra metáfora, os surdos no protesto fazem uma construção de pedras, representando a FENEIS (a federação nacional dos surdos), as associações de surdos estaduais, a cultura surda, as associações esportivas dos surdos e a sociedade que apoia os surdos. Na verdade, todas as pedras da construção são coisas abstratas – sabemos que associações, culturas e sociedades não têm forma –, mas por metáfora são transformadas para serem concretas e mostrarem que os conceitos abstratos também apoiaram a luta. Quando os surdos no poema fazem essa construção referência, eles erguem uma bandeira enorme em cima dela, que tremula com o orgulho da Libras. A bandeira é um objeto concreto, mas a importância da língua de sinais é abstrata. A criação do sinal da bandeira feita por mãos que sinalizam mostra a importância da Libras para a comunidade surda. A bandeira não é de fato feita por uma língua nem pode fazer um prédio tremer, mas através da metáfora Alan Henry cria a ideia de que isso é possível.

No último exemplo, vemos um conceito visual importante de metáfora em Libras, que é a ligação entre a forma dos sinais e a forma física do referente. Uma bandeira tem uma área extensa de duas dimensões. A mão aberta também tem uma área extensa bidimensional. O deslocamento da mão no espaço traça uma área ainda maior, que cria uma bandeira maior. É fundamental a essa metáfora em Libras que a forma dos sinais bandeira e sinal, e dos sinais bandeira-grande-tremulando e mãos-sinalizando, sejam muito parecidas. Essa ligação de forma e conteúdo numa metáfora é uma comparação ou um paralelo visual muito forte.

16.6. Metáforas conceituais

Na teoria de Lakoff e Johnson (1980) vemos uma diferença importante entre a metáfora conceitual e a metáfora linguística. Segundo os autores, a primeira é gerada por nossas associações entre conceitos abstratos mapeados do abstrato ao concreto. Esses mapeamentos mentais são realizados por meio de metáforas linguísticas. Por exemplo, na metáfora conceitual podemos lidar com abstrações como tempo, causas, relações sociais e emoções como se fossem coisas concretas. Embora as metáforas conceituais não sejam representadas diretamente na literatura em Libras, as representações linguísticas delas usam essas metáforas. Falaremos um pouco sobre elas agora.

Metáforas ontológicas43 são formas de conceber conceitos abstratos tais como eventos, atividades e emoções como se fossem entidades e substâncias reais. Na metáfora ontológica, a mente é uma entidade que funciona como um recipiente. Podemos, literalmente, colocar objetos concretos dentro de um recipiente e, metaforicamente, a informação é colocada dentro dele e manejada por meio de vários classificadores e configurações de mão (NASCIMENTO, 2009, p. 52-53). Claro que a mente não é um recipiente de verdade, mas pensamos nos processos intelectuais como se fossem objetos concretos que podemos manipular e colocar na mente. No sinal aprendizagem temos a ideia de que é possível segurar uma informação com a mão e colocá-la dentro da cabeça (onde se localiza a mente) e no sinal esquecer imaginamos que podemos tirar uma informação da cabeça com a mão.

Nas metáforas estruturais, um conceito é estruturado em termos de outros (NASCIMENTO, 2009, p. 52). Nos poemas em Libras podemos ver exemplos como CONHECIMENTO É LUZ e LIBERDADE É VOAR. Com o primeiro, pode-se falar do sol ou de uma lanterna com a intenção de falar do conhecimento ou do entendimento. O poema O Farol da Barra, de Maurício Barreto, que fala da importância da Libras para os surdos, começa com sinais que falam da escuridão da noite, seguido de um pouco de iluminação da lua e depois da clareza do Farol. Esse poema também trata da metáfora A GRAÇA DE DEUS É LUZ. O sinal graça-divina é apresentado sendo semelhante ao sinal luz-do-farol, para que o poeta possa usar os dois sinais para dizer que a graça de Deus é como a luz do farol, não apenas conceitualmente, mas também porque o sinal graça é como o sinal luz-do-farol.

Metáforas espaciais ou orientacionais organizam todo um sistema de conceitos em relação a outro a partir de bases físicas, sociais e culturais possíveis que estão enraizadas na experiência física e cultural. Por exemplo, locações ou movimentos para cima mostram a ideia de estar bem, de coisas positivas, do que é bom; os mesmos movimentos para baixo representam a ideia de estar mal, de coisas negativas, do que é ruim. Essas metáforas orientacionais são muito importantes para falar de poder e opressão.

Como vimos no capítulo anterior, no poema As Brasileiras, de Anna Luiza Maciel e Klícia Campos, os sinais da poderosa Paulistana são articulados acima dos sinais da pobre Nordestina. Não falam diretamente do poder, mas a locação dos sinais mostra essa desigualdade metaforicamente. No poema Como Veio Alimentação, de Fernanda Machado, o olhar, o corpo, a locação e a direção do movimento dos sinais relacionados ao trabalhador rural pobre são mais baixos do que os do consumidor urbano rico.

A configuração de mão pode ter sentido simbólico. Os sinais com dedos curvados “em garras” têm sentidos mais negativos do que aqueles feitos com os dedos esticados. Os sinais em Libras guerra, raiva, angústia e violência, têm essa configuração de mão, e essa associação permite novos sentidos nos poemas. Em Como Veio Alimentação, os dedos dos sinais articulando o trabalhador são curvados e os dedos usados para representar o consumidor são retos. Em Meu Ser é Nordestino, sinais com mão em garras, sendo eles normalmente negativos ou não, dão a impressão de sofrimento, como sol-forte, seca, árvore-torta e até rural. Vamos falar mais sobre isso no capítulo 18.

Lembramos que nem todos os movimentos e as locações ou configurações de mão têm sentido metafórico. Por exemplo, A Pedra Rolante, de Sandro Pereira, tem sinais de diversas alturas e configurações de mão, mas não têm sentido metafórico.

resumo

16.7. Resumo

Nesse capítulo, investigamos a importância da metáfora para a literatura em Libras. Vimos que a metáfora é uma maneira pela qual a pessoa fala uma coisa, mas tem a intenção de ser entendida de outra forma. Em Libras, assim como em português, muitas vezes falamos de ideias abstratas por meio de coisas concretas. Todavia, a Libras usa essa figura muito mais do que a língua portuguesa por ser uma língua visual em que o vocabulário é baseado na forma de imagens concretas de coisas que são abstratas.

Muitos textos literários em Libras não usam metáforas, mas em outras produções textuais na língua o significado apresentado pelo conteúdo não é o sentido único ou verdadeiro do texto. Vimos exemplos de fábulas e parábolas contadas em Libras em que a narrativa tem um significado além da história, e que geralmente faz parte desta. Observamos, também, que existem outras histórias e outros poemas metafóricos que não explicam a metáfora e fica a cargo do público resolver o enigma. Talvez a resolução não seja fácil, ou não seja definitiva ou, talvez, o público nem perceba a presença de uma metáfora, mas tudo isso faz parte da rica experiência do público literário de Libras.

atividade

16.8. Atividade

  1. Crie um poema curto em Libras para cada estação do ano (primavera, verão, outono e inverno).

Ajuste a velocidade (rápida ou lenta) e o tamanho (grande ou pequeno) dos sinais e use metáforas orientacionais para ilustrar simbolicamente as diferenças entre as quatro estações.

Por exemplo, seu poema sobre a primavera pode ter movimentos rápidos para sugerir que é uma estação de mudanças; já o verão pode ter movimentos lentos para sugerir o calor.

  1. Pense em sinais com mãos em garra com sentido negativo.

    • Pense em sinais com mãos em garra com sentido positivo.
    • Pense em sinais com mãos abertas com sentido negativo.
    • Pense em sinais com mãos abertas com sentido positivo.
    • Pense em sinais com locação alta e/ou movimento para cima com sentido negativo.
    • Pense em sinais com locação alta e/ou movimento para cima com sentido positivo.
    • Pense em sinais com locação baixa e/ou movimento para baixo com sentido negativo.
    • Pense em sinais com locação baixa e/ou movimento para baixo com sentido positivo.
    • Agora, crie um poema curto em Libras que use esses sinais de forma metafórica.
A metáfora não se traduz para outras línguas orais. Por exemplo “wooden faced” – a tradução literal de cara de pau para inglês, significa que a pessoa não mostra as emoções (em português isso seria “cara de samambaia” ou “cara de paisagem”). Fora dos sinais em BSL que ele repete: “Coitada da boneca.” A ontologia estuda os seres e a relação entre conceitos de sistemas diferentes e pergunta “O que é isso?”